quarta-feira, 24 de julho de 2024

Wie kriege ich mein Lachen zurück?

foi-te roubada a inocência
uma mão sobre a tua boca depois do anjo
ter selado os teus lábios

uma mão na tua alheando-te os passos
mostrando o seu mundo tirando
a cada vez um pouco mais de ti

és tu e não és mais tu
saído dessa casa
a que queres volver e deixas
escrito na coluna a pergunta

como posso voltar
a ter o meu riso

na tua língua o retorno é um confronto
guerreia-se sem mérito para se ter
nada

como volta para os teus lábios
um riso depois da violência 

uma inocência desfigurada
um esgar traça a entrada num outro
tempo

mas como o segredo da semente
na árvore e da árvore 
na semente prometo-te 
sem luta vem um riso
sem luta vem um sorriso

segunda-feira, 1 de julho de 2024

Fausto - Lembra-me um sonho lindo

obrigado, pelo menos, por esta música  
 Lembra-me um sonho lindo
Quase acabado
Lembra-me um céu aberto
Outro fechado
Estala-me a veia em sangue
Estrangulada
Estoira num peito um grito
À desfilada
Canta rouxinol canta
Não me dês penas
Cresce girassol cresce
Entre açucenas
Afaga-me o corpo todo
Se te pertenço
Rasga-me o vento ardendo
Em fumos de incenso
Lembra-me um sonho lindo
Quase acabado
Lembra-me um céu aberto
Outro fechado
Estala-me a veia em sangue
Estrangulada
Estoira num peito um grito
À desfilada

Ai como eu te quero
Ai de madrugada
Ai alma da terra
Ai linda, assim deitada

Ai como eu te amo
Ai tão sossegada
Ai beijo-te o corpo
Ai seara, tão desejada

Canta rouxinol canta
Não me dês penas
Cresce girassol cresce
Entre açucenas
Afaga-me o corpo todo
Se te pertenço
Rasga-me o vento ardendo
Em fumos de incenso

Ai como eu te quero
Ai na madrugada
Ai alma da terra
Ai linda assim deitada

Ai como eu te amo
Ai tão sossegada
Ai beijo-te o corpo
Ai seara, tão desejada
Ai como eu te quero
Ai na madrugada
Ai alma da terra
Ai linda assim deitada
Ai como eu te amo
Ai tão sossegada
Ai beijo-te o corpo
Ai seara, tão desejada
Ai como eu te quero
Ai na madrugada
Ai alma da terra
Ai linda assim deitada
Ai como eu te amo
Ai tão sossegada
Ai beijo-te o corpo
Ai seara, tão desejada
Ai como eu te quero
Ai na madrugada
Ai alma da terra
Ai linda assim deitada

domingo, 16 de junho de 2024

primavera

a tília abriu-se
juntou-se às noites

de jasmim e sabugueiro e o lírio
d’água saiu do seu sonho de lama

os gansos voltaram das suas estâncias
as searas fartas sangram o seu ópio

e por todo o lado as gargantas melodiam
o inalcançado por Messiaen

os céus de Friedrich fecham-se com volúpia
enegrecem o rio e o olhar que por ele entra

a cicatriz de luz
corre a redoma que nos protege

é isto afinal a primavera
a beleza aterrorizando o corpo

domingo, 19 de maio de 2024

pega em dois seixos

pega em dois seixos
entre os dedos suavizados
pelas águas do rio

bate um contra o outro
chama os pássaros
pede-lhes que cantem mais
alto que os gritos deste mundo
consolem o choro das mães

depois deita-te junto às margens
coloca essas pedras sobre os teus olhos
deixa-te ir num vento que traga

o aroma de terra seca
a ausência de um amigo

quarta-feira, 15 de maio de 2024

nunca esteve comigo

nunca esteve comigo mas sinto
o peso atroz e dorido do seu abandono

permaneço hoje quase sempre calado
de olhar absorto no espaço
entre as águas e o céu

não irei longe nem tenho onde ficar
não me foram permitidas raízes
nem o canto nas madrugadas

sinto a sua ausência
na ponta dos dedos eu que quis uma casa
na língua 

quinta-feira, 25 de abril de 2024

sonhei que seria um dia

sonhei que seria um dia
escritor        separei a prosa
da poesia        sonhei coisas terríveis
dedos invisíveis
a tocarem os corações
dos leitores       sei que foi
um sonho
tantos anos acordado sufocado pelas coisas
terríveis e os seus dedos em redor
do meu coração          quando desvanecer a desilusão
terei de sonhar um dia
que haverão leitores
e nenhuma separação

domingo, 21 de abril de 2024

looking at a dictionary

he gazes at the book

it lies in between
things keeping words that are
true      under the window
where the light of day falls
on tenderly     weakly           a man
with a short grey beard stares at
a blank page hiding
a slightly dormant stress

we stand so far apart (I guess)
from understanding what it all means

terça-feira, 27 de fevereiro de 2024

Quem ama corre

quem ama corre
o risco de esquecer
o seu nome        habita um vento
que se torna tempestade e
sombra
onde não se escuta
mais o silêncio
que outrora se diria casa

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

i'm not meant to be (original em inglês)

I’m not meant to be
loved. the flowers scent no death
nor evil when you lay to
sleep. dream then of distant roots
unravelled through thoughts like stones
falling carelessly on ponds
which can hold
you. for I’m not to be
found among shattered mirrors
nor grown in your absence
unless you heartfeltly greet
my shadow

terça-feira, 19 de dezembro de 2023

estamos cansados

estamos cansados e ainda
assim a beleza revela
o seu escondido e secreto
rosto
caminhamos de mãos dadas com o futuro
no seu passo curioso

com voz de corvo chamamos-te
com garganta de cobre cheia de ferrugem chamamos
pela tua proximidade

com o castanho das árvores e lama
olhamos fundo o encontro
dos olhos

conhecemos o pó das tuas mãos
que nos ampara na esperança
que para nós rouba a cinza
da noite
para que possamos dormir melhor

conhecemos o pó e a cinza
do teu nome e sonhos        mas

não nos conhecemos mais
o cansaço deixa-nos cegos 

(tradução do original em alemão)

quarta-feira, 6 de dezembro de 2023

quando me chama por esse nome

quando me chama o coração
festeja como uma figueira farta
o arroxear dos seus figos

também eu os chamei         que árvores
serão meu pai e minha mãe
quando ainda os nomeio          o que rebenta

traz a minha voz água
tem o meu beijo terra

o que há a podar para ser
o seu exemplo

traz a minha voz terra
tem o meu beijo água

sexta-feira, 17 de novembro de 2023

Longo cai o crepúsculo

longo cai o crepúsculo
e partem gansos para longe

macula-se a vista
de indiferença        a luz não se abre
entre as sombras nada se recorta
do fundo        na hora mais clara
do anonimato
um coração apazigua a sua sordidez e dá-se
para a comunidade dos que estão sós
como penhascos numa tempestade
o escuro avança
contra o corpo
as andorinhas e os morcegos trocam os seus turnos
o pinheiro enegrece junto ao trevo e a terra
distila o silêncio que te faz nome

longo cai o crepúsculo
e a torrente da memória engolfa
o caminho        é quando as decisões dão 
ares de juiz e algoz e este ganso
estaca o passo pelo campo
e pergunta pelo fio do rumo

(os dois primeiros versos são retirados, com uma ligeira alteração, de um poema de José Manuel Teixeira da Silva. é-lhe assim, este poema, dedicado)

sábado, 11 de novembro de 2023

Senzenina

as ruas estão vazias menos da vida
ignorada que grassa com a
aurora antes do bulício
do mundo cego

ela vai e vem
com inquieta prudência
recolhe os restos

o que é que nós fizemos
o nosso único pecado é não sermos tu

sexta-feira, 3 de novembro de 2023

Ela atravessava o campo

ela atravessava o campo iluminado pela queda
da primeira geada e as folhas acobreadas
pela secura do verão         ela cantava
uma melodia para se manter ausente
da ebulição do mundo
interior         ela esperava junto à janela
com a mão num aceno congelado pelo vidro

lá fora a neblina elevava-se sobre as águas
cobriu-lhe o rosto como uma máscara
esquecida do jogo nupcial
que assemelha a dor e o prazer

ela virava-se para a lado da parede
de olhos expectantes no escuro
sem melodia que a evadisse como gansos
a pesar a decisão de partir ou esperar
o equinócio do frio
dos gritos que ele não escuta

domingo, 22 de outubro de 2023

Escurece em torno

escurece em torno do coração

antecipo a tristeza como um repentino frio
antes da noite mais longa         o voo
em seta para onde a luz se dilata
antes de o gelo cobrir a vida
do rio

antecipo a lágrima enfrentando o vento
a mágoa marejada na represa da garganta
com o silêncio de um poema        antecipo a morte

entre duas respirações        nas cartas deixadas
por enviar
infectas de lamentos e injúrias
nas decisões abruptas e pela raiz 
de largar mão já solta da amizade
para encontrar a efémera leveza
de se estar vivo

escurece em torno e ecoa
o riso da mulher da trácia
por nunca antecipar a queda

quinta-feira, 21 de setembro de 2023

a vida não é

a vida         não é         sempre
interrompida

para que foram as promessas ditas
os fogos ateados na câmara escura
para o deslumbramento dos olhos         são noites frias
agora que te cercam        embrenhado em
solilóquios a torturar até à última lembrança
com a impassibilidade de um touro moribundo
engolfado no seu silêncio
de angústia existencial e sangue

o deserto do dia
a dia afasta os corações
e nem sequer há
mais lágrimas para um novo mar

tu não teces e desteces
eu não retorno há anos
a casa
simplesmente a vida
não é         sempre interrompida

terça-feira, 22 de agosto de 2023

a memória já não é uma suave papoila

a voz estala aos teus lábios
farpas
          pedras moldam as palavras que terias
uma vez o acaso de dizê-las

quem te embriaga no aroma das tílias
agora que a memória já não é
                                                uma suave papoila

quem te embriaga com o entardecer
a fazer sombra no rosto

a partilha
quebrada
uma fuligem na matéria das coisas
os gestos desabitados        tão próximos agora
do solipsismo

da morte

da vida

sábado, 5 de agosto de 2023

Balatonederics 4 d’Agosto

as setarias pendidas e ainda verdes
o trevo negro num prado de uvas
expectantes pelo sol d’agosto
os vulcões mortos d’outros tempos
e as suas lágrimas de basalto

podes viver pelo olhar
difícil será morar 
nesta língua das águas do balaton

donde vieste o teu nome tem espinhos
aqui é doce nos lábios e forte na garganta

onde está o sal e o azul para acompanhar
as nozes e as amêndoas

os aloendros estão em flor mas ruge o trovão
e muito terias de andar para afogar a sede da tristeza
num verde de lodo e mais claro que os teus olhos

podes viver pelo olhar
difícil será morar nesta língua

quarta-feira, 26 de julho de 2023

Noah às três da manhã

no princípio era a sede
num escuro ardido pela vontade de a saciar
e onde os olhos moldavam as trevas
junto aos corpos que envolviam o seu sono
tocaram uma falta de pesadelo         no princípio
era a sede e o pai
ergueu-se saído dos seus sonhos
mãos estendidas para levar o vaso com a água e o escuro
era demasiado escuro e a sede avançava
árida pela garganta que o apelo não cessava
e o pai fez a escuridão recuar abrindo o espaço
com uma luz forte e branca
e dela saíram as sombras
e os seus olhos animaram um sentido que não percebia
e o medo surgiu onde nada havia 
e o que uma vez estava em si agora
respirava com o movimento dos seus olhos
e o apelo tornou-se choro
e a mãe fechou-o no seu peito farto de leite
e ordenou o pai amaciar a luz em amarelo 
aproximando-se das coisas como uma carícia
não forte mas farta como o seu peito

foi-lhe dito que no nada nada havia e que se enchia
pela imaginação só que uma vez
saído do escuro onde estava na existência do sono
para a penumbra suave em que o pai tinha
a água e a mãe o leite no peito batido
por um coração farto de amor
não mais quis voltar
porque agora havia o escuro da imaginação 

e a mãe e o pai derrotados pelo cansaço
trouxeram a canção aos seus lábios
e revezavam-se nos seus modos de o apaziguar
o pai com as suas vagas de oceano
a mãe com a espuma de beira-mar
e não mais podiam contra a noite quente de julho
e não mais podiam contra o seu desejo de despertar 
e quando à terceira não mais podiam
ele largou as amarras e adormeceu
junto ao corpo nu e morno da mãe 
e o pai com a insónia de um faroleiro

segunda-feira, 10 de julho de 2023

devolver o espanto

o vento trazia na dança de folhas
a seca do eucalipto
cessado o grito das máquinas e sereias
o furor das cigarras celebrava o sol 
                                                        comigo
a solene preguiça dos livros

eu via como caminhavam no que eu dizia
rumo ao sem-sentido         no fumo
as vozes acotovelando-se
para cada um nada ser atendido

fechei os olhos
junto ao peito

devolve-me o espanto
da infância
mostra-me um coração
incorrupto

sábado, 3 de junho de 2023

junta o vento ao algodoeiro

junta o vento ao algodoeiro 
e uma lembrança que arda
troca o pó pelo pólen
para o que foi germine no que vem

junta uma papoila a um ramo de espigas
e lança tudo sobre o peito estendido
ao sol com as sombras à mão

junta o olhar da garça ao rio
filia-te ao que vive         com a cabeça
na pedra escuta a paciência sem queixas
que te sopesa

depois         parte

fala na tua língua

fala no teu canto

fala

talvez assim o vazio se esvazie

domingo, 23 de abril de 2023

para conhecer uma língua

fui chamado a falar 
e as pedras suspiraram
no seu abandono

levantei o olhar para a lua
que prescindiu a reflexão

errei assim
pelas palavras         caídas de um astro
ao longo das inclinações         com a soberba
subida aos lábios         o retinir
dos sinos fremindo a água
dispersou a atenção sonhadora da criança

fez-se-me surda a boca à vontade

fui chamado
para falar         submeter o desígnio
das coisas à adivinhação dos dedos

só ele escuta a língua
que falas com a sede de uma terra estiada

com cuidado plantando a novidade
no mundo a cada vez iterada

também ele um dia será
chamado         e a custo
a língua lhe pedirá que conheça
o abandono da pedra