sexta-feira, 1 de agosto de 2025

pudesse a mão escrever

pudesse a mão escrever de dentro
da sua solidão apaziguada pelas coisas
a memória do teu corpo
mas a tragédia acontece
movida por razões abomináveis
um pedaço de terra um nome para
o inominável vazio que mora no coração
o desejo inconsolado de ser
reconhecido por uma mãe
um pai um animal
o silêncio de um poema

acontece a tragédia
há o dilúvio de sangue lágrimas e tinta
a morte soterrada pelas cinzas
e o pó e as mãos
inúteis esquecidas
sobre as folhas brancas de um caderno
cobrindo depois o rosto devastado pelo vento
o horror e o nojo de se pertencer
ao grande projecto falido
desta irrepetível criação

pudessem as mãos escrever
recomeçar como fruto de uma ficção
e descobrir a inclinação da verdade
o sentimento que floria no olhar
da minha cadela quando visitava o meu
o do meu filho de cinco meses a observar
o movimento das copas fartas 
e o voo dos corvos à janela
amoroso e sereno espanto que me faria
esquecer esquecer esquecer

o que o vivido faz pesar
no seu modo assombroso
assaltando-me como um predador
saído das sombras
e depois entregando-me
vulnerável à morte lenta e tortuosa
de um eu cancerígeno que revolve
a cada odor lembranças
de quando era inteiro

a mão não agarra o tempo a cavalgar
rápido para a sua tragédia

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