terça-feira, 17 de setembro de 2024

quinta-feira, 12 de setembro de 2024

Scherzo

para dizer a verdade nunca sei
contra todos os indícios
se dançam pela vida ou para a morte
quando se encontram duas borboletas

terça-feira, 27 de agosto de 2024

pedras paus folhas

ele entra pelas águas
do lago cheio de inquietação
da viagem e o indefinido desejo
a pulsar no seu corpo de criança

respiga pelos trilhos
aos fundos de areias
quase brancas
pela passagem do tempo
da secura das ondas
arrepiadas pelo vento

pedras paus folhas

o segredo e mistério que portam
tocam o âmago da beleza e do amor
ao serem oferecidos sem o que esperar

pedras paus folhas
só a mim dirão da sua presença no grande rio
da memória a enlamear-se ditando
a lenta aproximação da morte

quarta-feira, 21 de agosto de 2024

O teu é o primeiro nome

o teu é o primeiro nome
que me vem à boca ainda a aurora
mal pôs os seus dedos róseos
a cintilar o suor da noite        o primeiro

é o teu corpo que me conhece
o terror dos sonhos e o delírio
do coração vígil        chorei

ao ter da verdade a claridade de seres
tu a vida perdida a caminho de nunca
teres existido como a história

o teu nome o teu corpo a tua memória

alguém cria silêncios para nós

quinta-feira, 15 de agosto de 2024

Não damos mais as mãos

não damos mais as mãos
de permeio intrometeu-se um pequeno mundo
os nós que a vida teima em dar

também os lábios gelaram com o deserto
de beijos        movem-se assombrados
com palavras escuras mas rasgam-se
com a luz dos gestos da criança

os olhos refugiaram-se na atenção dos horrores
na displicência de um cansaço difícil de lavar
e trama a impaciência

anoitece entretanto       o outono
entra pela paixão        a secura
pelos campos

e como um aroma esquecido numa gaveta cheia
de linhos acende-se um passado
vem à beira-mar dos corpos
uma onda reencontrar o que nunca à partida esteve  perdido

terça-feira, 6 de agosto de 2024

O jardim

este caos vive eu não lhe toco
outros servem-se da esquadria
para os fazerem seus
eu pertenço-lhe        quando em si
entro como as ervas daninhas
e as que ignoro
o nome        pertenço-lhe
como as papoilas e as estrelas
da Pérsia
o ácer japonês a oliveira
a alfazema a hortelã a sálvia
os animais na sua diversidade

pertenço a este silêncio do labor da vida
não falo escuto apenas o tempo a encarquilhar
as folhas a queda a luz recortada
pela escuridão do meu corpo        este caos
está por dentro e não lhe toco

não se toca numa vida nem se a tem

eu entro nesse jardim onde elas estão
deitadas ao sol e junto-me emudecido
no silêncio de uma vida

terça-feira, 30 de julho de 2024

depois de canoagem de JMM

hoje sei-me só no corpo vulnerável (que fracassa)
sei-me longe do sangue que filia
dos prados das montanhas

sei-me só junto ao fel da navalha e da ruína
das estátuas deitadas no musgo
dos cancros nos troncos podres caídos pelo vento

como uma cidade adormecida assombra-me um silêncio
entre a boca e o peito desde o primeiro ar sorvido
fecho os olhos à beira dos rios onde a luz se irisa
para acolher o mensageiro de um sonho

sei-me só

num sussurro o mundo uma lacuna
o tempo sem onde cair morto nas mãos
a dar nome à poeira
nos lábios junto ao sabat da sua nuca

espero notícias sobre quem vem de sem onde
habito os castelos de núvens para saber
um pouco mais o sabor da queda

sei-me só à beira da fogueira que vela
a última luz sob a cinza

um inverno livra-me de ti e de mim
debaixo da neve do gelo da madeira
queimada a alimentar a desilusão

sei-me só

se desaparecer quem nos amou como sobrevivemos ainda

quarta-feira, 24 de julho de 2024

Wie kriege ich mein Lachen zurück?

foi-te roubada a inocência
uma mão sobre a tua boca depois do anjo
ter selado os teus lábios

uma mão na tua alheando-te os passos
mostrando o seu mundo tirando
a cada vez um pouco mais de ti

és tu e não és mais tu
saído dessa casa
a que queres volver e deixas
escrito na coluna a pergunta

como posso voltar
a ter o meu riso

na tua língua o retorno é um confronto
guerreia-se sem mérito para se ter
nada

como volta para os teus lábios
um riso depois da violência 

uma inocência desfigurada
um esgar traça a entrada num outro
tempo

mas como o segredo da semente
na árvore e da árvore 
na semente prometo-te 
sem luta vem um riso
sem luta vem um sorriso

segunda-feira, 1 de julho de 2024

Fausto - Lembra-me um sonho lindo

obrigado, pelo menos, por esta música  
 Lembra-me um sonho lindo
Quase acabado
Lembra-me um céu aberto
Outro fechado
Estala-me a veia em sangue
Estrangulada
Estoira num peito um grito
À desfilada
Canta rouxinol canta
Não me dês penas
Cresce girassol cresce
Entre açucenas
Afaga-me o corpo todo
Se te pertenço
Rasga-me o vento ardendo
Em fumos de incenso
Lembra-me um sonho lindo
Quase acabado
Lembra-me um céu aberto
Outro fechado
Estala-me a veia em sangue
Estrangulada
Estoira num peito um grito
À desfilada

Ai como eu te quero
Ai de madrugada
Ai alma da terra
Ai linda, assim deitada

Ai como eu te amo
Ai tão sossegada
Ai beijo-te o corpo
Ai seara, tão desejada

Canta rouxinol canta
Não me dês penas
Cresce girassol cresce
Entre açucenas
Afaga-me o corpo todo
Se te pertenço
Rasga-me o vento ardendo
Em fumos de incenso

Ai como eu te quero
Ai na madrugada
Ai alma da terra
Ai linda assim deitada

Ai como eu te amo
Ai tão sossegada
Ai beijo-te o corpo
Ai seara, tão desejada
Ai como eu te quero
Ai na madrugada
Ai alma da terra
Ai linda assim deitada
Ai como eu te amo
Ai tão sossegada
Ai beijo-te o corpo
Ai seara, tão desejada
Ai como eu te quero
Ai na madrugada
Ai alma da terra
Ai linda assim deitada
Ai como eu te amo
Ai tão sossegada
Ai beijo-te o corpo
Ai seara, tão desejada
Ai como eu te quero
Ai na madrugada
Ai alma da terra
Ai linda assim deitada

domingo, 16 de junho de 2024

primavera

a tília abriu-se
juntou-se às noites

de jasmim e sabugueiro e o lírio
d’água saiu do seu sonho de lama

os gansos voltaram das suas estâncias
as searas fartas sangram o seu ópio

e por todo o lado as gargantas melodiam
o inalcançado por Messiaen

os céus de Friedrich fecham-se com volúpia
enegrecem o rio e o olhar que por ele entra

a cicatriz de luz
corre a redoma que nos protege

é isto afinal a primavera
a beleza aterrorizando o corpo

domingo, 19 de maio de 2024

pega em dois seixos

pega em dois seixos
entre os dedos suavizados
pelas águas do rio

bate um contra o outro
chama os pássaros
pede-lhes que cantem mais
alto que os gritos deste mundo
consolem o choro das mães

depois deita-te junto às margens
coloca essas pedras sobre os teus olhos
deixa-te ir num vento que traga

o aroma de terra seca
a ausência de um amigo

quarta-feira, 15 de maio de 2024

nunca esteve comigo

nunca esteve comigo mas sinto
o peso atroz e dorido do seu abandono

permaneço hoje quase sempre calado
de olhar absorto no espaço
entre as águas e o céu

não irei longe nem tenho onde ficar
não me foram permitidas raízes
nem o canto nas madrugadas

sinto a sua ausência
na ponta dos dedos eu que quis uma casa
na língua 

quinta-feira, 25 de abril de 2024

sonhei que seria um dia

sonhei que seria um dia
escritor        separei a prosa
da poesia        sonhei coisas terríveis
dedos invisíveis
a tocarem os corações
dos leitores       sei que foi
um sonho
tantos anos acordado sufocado pelas coisas
terríveis e os seus dedos em redor
do meu coração          quando desvanecer a desilusão
terei de sonhar um dia
que haverão leitores
e nenhuma separação

domingo, 21 de abril de 2024

looking at a dictionary

he gazes at the book

it lies in between
things keeping words that are
true      under the window
where the light of day falls
on tenderly     weakly           a man
with a short grey beard stares at
a blank page hiding
a slightly dormant stress

we stand so far apart (I guess)
from understanding what it all means

terça-feira, 27 de fevereiro de 2024

Quem ama corre

quem ama corre
o risco de esquecer
o seu nome        habita um vento
que se torna tempestade e
sombra
onde não se escuta
mais o silêncio
que outrora se diria casa

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

i'm not meant to be (original em inglês)

I’m not meant to be
loved. the flowers scent no death
nor evil when you lay to
sleep. dream then of distant roots
unravelled through thoughts like stones
falling carelessly on ponds
which can hold
you. for I’m not to be
found among shattered mirrors
nor grown in your absence
unless you heartfeltly greet
my shadow

terça-feira, 19 de dezembro de 2023

estamos cansados

estamos cansados e ainda
assim a beleza revela
o seu escondido e secreto
rosto
caminhamos de mãos dadas com o futuro
no seu passo curioso

com voz de corvo chamamos-te
com garganta de cobre cheia de ferrugem chamamos
pela tua proximidade

com o castanho das árvores e lama
olhamos fundo o encontro
dos olhos

conhecemos o pó das tuas mãos
que nos ampara na esperança
que para nós rouba a cinza
da noite
para que possamos dormir melhor

conhecemos o pó e a cinza
do teu nome e sonhos        mas

não nos conhecemos mais
o cansaço deixa-nos cegos 

(tradução do original em alemão)

quarta-feira, 6 de dezembro de 2023

quando me chama por esse nome

quando me chama o coração
festeja como uma figueira farta
o arroxear dos seus figos

também eu os chamei         que árvores
serão meu pai e minha mãe
quando ainda os nomeio          o que rebenta

traz a minha voz água
tem o meu beijo terra

o que há a podar para ser
o seu exemplo

traz a minha voz terra
tem o meu beijo água

sexta-feira, 17 de novembro de 2023

Longo cai o crepúsculo

longo cai o crepúsculo
e partem gansos para longe

macula-se a vista
de indiferença        a luz não se abre
entre as sombras nada se recorta
do fundo        na hora mais clara
do anonimato
um coração apazigua a sua sordidez e dá-se
para a comunidade dos que estão sós
como penhascos numa tempestade
o escuro avança
contra o corpo
as andorinhas e os morcegos trocam os seus turnos
o pinheiro enegrece junto ao trevo e a terra
distila o silêncio que te faz nome

longo cai o crepúsculo
e a torrente da memória engolfa
o caminho        é quando as decisões dão 
ares de juiz e algoz e este ganso
estaca o passo pelo campo
e pergunta pelo fio do rumo

(os dois primeiros versos são retirados, com uma ligeira alteração, de um poema de José Manuel Teixeira da Silva. é-lhe assim, este poema, dedicado)

sábado, 11 de novembro de 2023

Senzenina

as ruas estão vazias menos da vida
ignorada que grassa com a
aurora antes do bulício
do mundo cego

ela vai e vem
com inquieta prudência
recolhe os restos

o que é que nós fizemos
o nosso único pecado é não sermos tu

sexta-feira, 3 de novembro de 2023

Ela atravessava o campo

ela atravessava o campo iluminado pela queda
da primeira geada e as folhas acobreadas
pela secura do verão         ela cantava
uma melodia para se manter ausente
da ebulição do mundo
interior         ela esperava junto à janela
com a mão num aceno congelado pelo vidro

lá fora a neblina elevava-se sobre as águas
cobriu-lhe o rosto como uma máscara
esquecida do jogo nupcial
que assemelha a dor e o prazer

ela virava-se para a lado da parede
de olhos expectantes no escuro
sem melodia que a evadisse como gansos
a pesar a decisão de partir ou esperar
o equinócio do frio
dos gritos que ele não escuta