sexta-feira, 12 de abril de 2019

queres por aqui ficar

quando apareceste o amor tinha ido
dar uma volta ao cabo Espichel
debruçava-se na falésia e da sua voz
fazia o rebate choroso das ondas

pedia ao tempo que se alentasse
como o barco caído na linha
da separação dos dois
azuis

viu quanto dura a rotação e a luz
a esquivar-se da opacidade da memória
dos corpos e da espuma desses dias

toda a despedida é um até já
até que a morte quebre qualquer laço

do que virá depois só posso guardar
silêncio          lancei-o por fim ao mar
essa coisa seca
em que se tornou o coração               como uma pedra
para chapinhar nas ondas
ou uma estrela de retorno a casa

lavou-se da conta dos fados
do canto das fodas
das palavras ébrias
foi dar às rochas
esmurchecido
como um cão sob o peso da bátega

agora bate com a precisão
e atrasos dos comboios
faz pontes e ecoa
as juras e mentiras da paixão

talvez vás ainda
a tempo          estas purgas
duram         toma-lhe o peso do sal
aproxima o teu ouvido e escuta
às vezes acordo do longo sono e volto-me
com docilidade para o delicado
abismo da desordem*

queres por aqui ficar


*Clarice Lispector

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