quinta-feira, 4 de outubro de 2018

O mal de Quixote - uma leitura em torno de "O homem que matou D.Quixote" de Terry Gilliam



Como muitos outros filmes de Terry Gilliam o realizador explora o fantástico da literatura, misturando-o com a realidade cinematográfica, ela própria uma ficção paralela à realidade exterior da película. Desta vez, a figura que Gilliam recupera é o cavaleiro do séc.xvii D. Quixote de la Mancha, personagem da obra-prima de Miguel de Cervantes. A linha sobre a qual Gilliam assenta a sua «narrativa» é a do jovem criador em luta consigo próprio enquanto busca a excitante extravagância da sua primeira obra, que lhe granjeia a fama. Toby é um jovem realizador considerado, pelo mundo cinematográfico e pela companhia que o rodeia, como um génio, com fama adquirida após ter rodado o seu primeiro filme, um projecto final universitário, intitulado "o Homem qu matou D. Quixote", criado uns dez anos antes da nova produção, justamente aquela que assistimos estar ele a criar enquanto espectadores. A nova criação não é senão uma recriação do romance "D. Quixote".

Dez anos separa as duas criações e, ao longo do filme que assistimos, podemos dar conta o que distancia o criador no seu carácter de um e outro Quixote: de um lado, o jovem realizador, sonhador, inventivo com o pouco que tem, atento aos acasos que o rodeiam, aventureiro; do outro lado, um realizador como que inflamado pela fama, cínico, afectado no seu comportamento, arrogante, desesperançado e vazio de ideias. Outrora rodeado de amigos, ligado pelo amor à arte cinematográfica, agora por aduladores e manipuladores guiados pelo dinheiro. O realizador está, podemos ver, em crise, descrente da sua visão, pressionado pelos investidores, encurralado, mas prossegue, estando já ele corrompido pelo seu caminho cínico. Uma luz surge, porém, que desperta nele a chama dos sonhos da juventude, quando, angustiado no seu vazio e asfixiado pelas pressões, o director da produtora do novo filme, uma recriação de D. Quixote, lhe sugere, por mero acaso, ou escrutínio dos deuses, que assista ao seu primeiro filme, ao seu primeiro Quixote. Oferece-lhe o DVD dessa versão comprando-o a um cigano que, ao longo da película que assistimos, intervém sempre em momentos cruciais - críticos no seu sentido etimológico, de decisão vital, de escolha - exactamente como o dessa reunião com os investidores e a equipa (NOTA: seria interessante questionar o papel desse cigano ao lado de outras personagens similares da obra de Gilliam, tal como o Diabo Tom Waits, o Anjo da Morte em Barão Münchausen, ente outros).

Não falarei da aventura que antecede o visionamento do DVD, um momento cómico entre vários desta comédia «filosófica», mas o que nos é sugerido quando Toby visiona o seu primeiro filme: ele é confrontado com a «inocência criativa», a inocência que é capaz de derrubar as convenções. Ele é tomado pela nostalgia e no dia seguinte da rodagem, num contratempo, vai de visita à aldeia onde foi filmado o seu primeiro projecto, em busca das personagens reais que viveram na sua película, Angélica/Dulcineia (num belo trabalho da actriz portuguesa Joana Ribeiro), Javier/Quixote, apenas para descobrir que a sua estadia dez anos atrás provocou um mal acerbo à pequena aldeia e seus habitantes, perdidos e estagnados no tempo do cenário - não na vida ou na dor que cada um carrega. Angélica, enlevada pelo sonho do cinema e pelas palavras sedutoras de Toby procurou a sua sorte em Madrid e Barcelona para, no fim, sem sorte nesse trilho, acabas nas mãos de um magnata do vodka, um russo caprichoso que a maltrata; Javier, um simples sapateiro, pacífico e oco de violência, que levava Toby ao desespero porque não «encarnava» o D. Quixote, afinal, crê-se ser o próprio, o verdadeiro D. Quixote nascido no ano de 1600 e incapaz de morrer, preso por um feitiço de Malandrino - o momento de encarnar a personagem é-nos oferecido como o instante em que Javier relembra a sua verdadeira vida, ele é D. Quixote, ele não está a representar; aqui temos um momento de reencarnação, ou metempsicose: Javier é a personagem que Quixote representa no século xx e tão bem que se esqueceu ser Quixote, ou tendo nascido no século xx e vivido enquanto Javier, a releitura das suas aventuras, o forçar da sua revivência provoca o desvanecimento da consciência-Javier para revelar a verdadeira essência-Quixote.

A possessão ou encarnação deu-se, aliás, durante a rodagem, vemos isso à medida que Toby relembra o passado. Toby encontra Javier/Quixote encerrado numa carruagem, como se fosse uma atracção de um circo de curiosidades - o «freak» da língua anglo-saxónica - libertando-o por acidente, provocando na sua fuga um incêndio na aldeia. Mais tarde, a Guardia Civil aparece no local das rodagens tendo como prisioneiro o cigano que lhe vendeu o DVD, falsamente acusado de roubo por Toby e a mulher do presidente da produtora, para se ilibarem do adultério que iriam realizar, impedido pela chegada imprevista do marido. Toby é levado prisioneiro como suspeito do incêndio e partilha o jipe com este «espírito aventureiro»; e eis quando a aventura finalmente começa.

D. Quixote intervém e salva o seu escudeiro Sancho Pança/Toby. É também aqui, quando Toby veste as roupas de Sancho Pança trazidas por D. Quixote, que a grande questão deste filme arranca. Toby acede a ser Snacho Pança; um Sancho Pança com os pés fixos na realidade e não na ilusão Quixotesca, mas o continuado confronto entre real/ilusão acaba por ceder e Toby principia a «ver» e a aceitar o modo de existência quixotesco. (NOTA: o confronto real/ilusão-ficção salta igualmente para fora da tela, desta vez entre realidade/ficção, ou realidade não-cinematográfica vs. realidade cinematográfica, quando Toby se encontra na tasca do pai de Angélica. Ambos falam em castelhano, porém de modo a facilitar o diálogo, ou o preguiçoso espectador, Toby arreda com a mão, literalmente, as legendas traduzindo o diálogo, dizendo «nós não precisamos disto para nos entendermos», ambos desencadenado o diálogo em inglês, como se, talvez na verdade, cada um falasse a sua língua e se entendessem, como é já corrente em certos filmes e séries em que as personagens falam e conversam nas suas línguas maternas e diferentes e se entendem, por exemplo, Ocean's Eleven com o chinês acrobata).

O filme termina, na verdade, com a morte de D.Quixote. Melhor dito, com a morte do homem que encarnava o «espírito», ou a «alma», ou a «consciência-Quixote», Javier. As suas últimas palavras, como uma confissão de um moribundo, afirmam a sua identidade anterior, um simples sapateiro «com um daqueles rostos capazes de vender apólices de seguro». Despede-se do espírito ficcional retornando à sua identidade real. Mas o espirito não se perdeu; Toby, que lentamente veio a ser infectado pelo «mal de Quixote» - expressão que pisca o olho a Vila-Matas - encarna Quixote. Num instante de desespero livre de todos os constrangimentos, o choque do real - a morte de D.Quixote, a afirmação de uma identidad real que ele já não queria aceitar acreditando já, plenamente, na ilusão-Quixote, enfim, o choque numa crença a que se doou todo o seu coração, falamos desse choque atroz - é a sua consciência que por fim cinde, colapsa. Levando o cadáver de Javier jazendo no dorso de Rocinante, Toby desaparece e é Quixote que renasce para cumprir a sua promessa e viver para sempre, acompanhado de Angélica que, por amor, compromete a sua identidade e devém Sacho Pança, dando um novo sentido à frase «este é o início de uma estranha relação».

Este novo filme de Terry Gilliam tem decerto muitas leituras/interpretações. O que o filme me deu a pensar, naquilo que tem de ensaio filosófico-cinematográfico em torno da identidade e da criação de uma obra de arte - questão que me acode, talvez, porque me perturba, me alicia - é a seguinte e resumidamente (os pontos não têm qualquer relação hierárquica):

1 - O nascimento e morte da ficção vem do real.
2 - A vida da ficção vem da força na sua crença, vivendo-a plenamente
3 - Após a iluminação, a efulgência da primeira criação, o criador vive assombrado, ou seja, à sombra dessa criação e incapaz da sobrepôr, perseguido por esse acontecimento.
4 - Seduzido peal efulgência, o criador trabalha com o intuito de produzir um brilho maior e que apague ou desvaneça a sombra que o angustia.
5 - A assombração remete o criador para a repetição. Ele repete diferentemente a primeira efulgência como recuperação e como forma de sobreposição.
6 - Estando assombrado, o criador é incapaz de viver fora da criação, ao ponto de se despedir do real e abraçar completa e plenamente a obra e a ficção (da obra).
7 - Como caindo num Mäelstrom, o criador arrasta tudo consigo, como que dizendo «se me amas vens comigo até ao fim».

Alguma coisa estará a faltar neste pensamento não amadurecido, mas foi isto que Terry Gilliam me deu a pensar. Toby recria, uma vez mais, D.Quixote após o sucesso do passado, porém, nada lhe satisfaz; Javier vive na ficção que o abraçou e ele a ela, num momento de enorme tensão, livrando-se da ficção quando o real, o mais duro real, a morte, choca e destrói a ficcção; pelo desejo de criar uma obra de arte que se sobreponha à sua obra-prima da junventude, Toby vai cedendo à força da obra, da ficção, substituindo o real pela ficção até ser possuído pela ficção; Angélia, que não queria cair, uma vez mais, enamorada de Toby, aos poucos e poucos cede, culminando a cedência mergulhando-se na espiral, no remoinho em que o próprio Toby caiu, encarnando Sancho Pança, para poder acompanhar e tomar conta do «louco» Quixote, tendo sido, assim, por amor, infectada, também ela, pelo «mal de Quixote». Um mal que me parece o próprio Terry Gilliam sofrer, sendo este filme, em certos aspectos, uma repetição diferente de obras anteriores, tal como o Dr.Parnassos, o Barão de Münchausen, Brazil, desta contínua mistura de ficção e real. D. Quixote cumpre a sua promessa de viver para sempre, não só nos pacientes do «mal de Quixote», como a cada vez que alguém lê ou relê as suas aventuras.

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