quinta-feira, 11 de outubro de 2018

Galway Kinnell - VIII. O Chamamento através do vale do não saber


1

Na casa vermelha afundando-se
no chão apodrecido, uma lanterna
numa janela, as cinzas ajuntadas deixavam
uma única chama livre,
um sapato de um ferro sonhado pregado à parede,
duas metades incompatíveis deitadas lado a lado nas trevas,
eu posso sentir com a minha mão
o feto despertando-se
com um enorme zurzido de peixe, e assentando-se nas suas trevas.

O seu cabelo brilhando à luz da fogueira,
os seus seios cheios,
a sua barriga inchada,
um pôr-de-sol de fogo
oscilando tudo para um lado, a minha esposa dorme ainda,
feliz,
ao longe, num qualquer
recentemente aberto quarto do mundo.


2

Suor caindo das suas têmporas
Aristófanes fugiu
perante a boca – inventou tudo, pesadelizou tudo
no calor
desse momento que nos esfaqueou desde então:
que cada um de nós
é uma metade despedaçada
de cuja parte perdida procuramos através do tempo
até que morremos, ou desistimos –
ou a encontramos de facto:

tal como eu, num DC-6
das Linhas Aéreas Ozark zumbindo sobre
vilas feitas de encruzilhadas, dirigido
a Waterloo, Iowa, a encontrei de facto,
segurando o seu rosto por algumas horas
nas minhas mãos; e por razões – covardia,
lealdades, tudo isso que vai pelo nome «necessidade» –
a deixei...


in Galway Kinnell, The Book of Nightmares. Boston & New York, Houghton Mifflin Company, 1971: 57-58

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