Trabalho em casa perto das janelas
sem atender ao branco e à morte
As plantas cresceram no momento próprio
os pássaros enervam-se
teço pequenos labores por trás das horas
Sei que o tempo nas praças tem certezas
Aqui as portas são altas
cumprem-se gestos calmos de medo
gestos calmos de alegria
os livros imitam as palavras
mordo lisos frutos Trabalho em casa
misturado no branco e na morte
para cá da fina suspensão da luz
Falo de coisas simples: as últimas chuvas
a posição dos móveis o amor
O silêncio vai regressa pelas salas
*
Conheço sei a ausência do amor
Estou precisamente fora da solidão e só
um novo esforço me permite amar
de frente para solenes madeiras
Recolho ao tempo da escrita: ser amante
na insistente natureza da pele rebuscar
nos olhos a pintura inversa
Deteve-se o tempo da criação dos universos:
preparo o universo abandono
a imperícia de múltiplas mãos posso
comprender o universo uso os dedos
para te minar meu velho espectáculo
Emergem aquáticas erectas plantas a morte
alinha rápidas plateias: sou seu mestre
Abro-me o suave langor do corpo a grande noite
esgota a beleza da paisagem enuncio
as entradas do tempo seus erectos movimentos:
aqui fervem as palavras ali sou solene
devagar experimento leves tactos
Estou precisamente fora da solidão e só
um pormenorizado esforço me permite
morrer
*
Quase caíra perto da tarde
depois dos trabalhos em casa
depois da solidão
Quase morrera era ainda tarde
Aqui é o coração à volta os pulmões
por dentro a visão ignora
as correntes O sangue leva a memória
que péssima memória diziam
A memória ilumina a visão por fora
uma concentração demasiada
Ali é o corpo quase caíra
Repito: a morte é sempre técnica
e bela sempre morte
ao lado das simples coisas
uma trompete da janela em frente
um frágil gesto no carro entre cidadãos
a pura perca de um movimento caro
delicado com cheiro a frutos
a inteligência e a geografia
*
Aqui é um quarto para dormir:
as raízes fervem e empenam as madeiras
as fulgurantes raízes envolventes que cumprem
a história das divisões
Mal falasse poderia dizer: aqui
morreu gente e no entanto esperar
a língua de fogo que percorre o cheiro
o corpo
Depois alinha os materiais prepara o trabalho
dedica-se a uma tarefa inútil e repetida
As sílabas irrompem pela boca
Poderia insistir: aqui é a sala de jantar
a história a cor patética dos alimentos
o minucioso prenúncio dos bichos:
coalhadas as sílabas na superfície
dos alimentos
Poderia pensar: eis o imenso universo
e fixar essa ideia nas janelas
no exterior das janelas
*
Lavei-te os dedos quando veio a manhã
e o frio te invadia a visão
Riscaras os vidros com o teu suave impudor
de medo e as ruas já te cingiam
com as suas poderosas gretas frutos secos
alimentos caros
Despi-te do resto de quentes bravatas
de algumas palavras em demasia
estimadas de um perfil aquoso e amante Perguntava:
as imagens onde estão?
que repouso alivias quando te deslocas?
Sob o musgo quantos de nós descobrem
o tempo?
in Manuel Fernando Gonçalves, outra geografia, Lisboa, Frenesi, 1985
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