segunda-feira, 28 de maio de 2012

Manuel Fernando Gonçalves II - 5 poemas

Trabalho em casa     perto das janelas
sem atender ao branco e à morte
As plantas cresceram no momento próprio
os pássaros enervam-se
teço pequenos labores por trás das horas
Sei que o tempo     nas praças     tem certezas
Aqui as portas são altas
cumprem-se gestos calmos de medo
gestos calmos de alegria
os livros imitam as palavras
mordo lisos frutos     Trabalho em casa
misturado no branco e na morte
para cá da fina suspensão da luz
Falo de coisas simples: as últimas chuvas
a posição dos móveis     o amor
O silêncio vai     regressa pelas salas

*

Conheço     sei a ausência do amor
Estou precisamente fora da solidão     e só
um novo esforço me permite amar
de frente para solenes madeiras
Recolho ao tempo da escrita: ser amante
na insistente natureza da pele     rebuscar
nos olhos a pintura inversa
Deteve-se o tempo da criação dos universos:
preparo o universo     abandono
a imperícia de múltiplas mãos     posso
comprender o universo     uso os dedos
para te minar     meu velho espectáculo
Emergem aquáticas     erectas plantas     a morte
alinha rápidas plateias: sou seu mestre
Abro-me o suave langor do corpo     a grande noite
esgota a beleza da paisagem     enuncio
as entradas do tempo     seus erectos movimentos:
aqui fervem as palavras     ali sou solene
devagar experimento leves tactos
Estou precisamente fora da solidão     e só
um pormenorizado esforço me permite
morrer

*

Quase caíra     perto da tarde
depois dos trabalhos     em casa
depois da solidão
Quase morrera     era ainda tarde
Aqui é o coração     à volta os pulmões
por dentro a visão ignora
as correntes     O sangue leva a memória
que péssima memória     diziam
A memória ilumina a visão por fora
uma concentração demasiada
Ali é o corpo     quase caíra
Repito: a morte é sempre técnica
e bela     sempre morte
ao lado das simples coisas
uma trompete da janela em frente
um frágil gesto     no carro     entre cidadãos
a pura perca de um movimento caro
delicado     com cheiro a frutos
a inteligência e a geografia

*

Aqui é um quarto para dormir:
as raízes fervem e empenam as madeiras
as fulgurantes raízes     envolventes     que cumprem
a história das divisões
Mal falasse     poderia dizer: aqui
morreu gente e     no entanto     esperar
a língua de fogo que percorre o cheiro
o corpo
Depois alinha os materiais     prepara o trabalho
dedica-se a uma tarefa inútil e repetida
As sílabas irrompem pela boca
Poderia insistir: aqui é a sala de jantar
a história     a cor patética dos alimentos
o minucioso prenúncio dos bichos:
coalhadas as sílabas na superfície
dos alimentos
Poderia pensar: eis o imenso universo
e fixar essa ideia nas janelas
no exterior das janelas

*

Lavei-te os dedos quando veio a manhã
e o frio te invadia a visão
Riscaras os vidros com o teu suave impudor
de medo e as ruas já te cingiam
com as suas poderosas gretas     frutos secos
alimentos caros
Despi-te do resto de quentes bravatas
de algumas palavras     em demasia
estimadas     de um perfil aquoso e amante     Perguntava:
as imagens     onde estão?
que repouso alivias quando te deslocas?
Sob o musgo     quantos de nós descobrem
o tempo?


in Manuel Fernando Gonçalves, outra geografia, Lisboa, Frenesi, 1985

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