quarta-feira, 8 de janeiro de 2020

mal de proust

dá-me um aroma
e dir-te-ei quem fui
e nenhum arrependimento se me
enrola na língua         a memória
que moldou este corpo
não o atraca na cama num sorriso
beato de lágrima ao canto do olho

eu caminho ou isso passa
e tudo que me assola são paisagens
onda que vem
dar à costa do olho sobrepondo qualquer coisa
mais profunda e tangível ao coração
e não é nada
                  que impeça o tempo de fluir e eu nele

fragmentos que me suspendem
tal como o ar a queda
de uma folha no teu rosto

uma pele sobre outra assim indistinta
ou um vidro duplicando o outro e entre
há sempre esta lâmina que fende
a minha atenção em duas         uma decisão
de ver a realidade como ela é         uma emboscada
revelando uma terceira
via         a testemunha impassível

um aroma que me prova ser
o passado ainda hoje e esse fui
é um sonho fora dos eixos do tempo-e-paisagem
a mão numa outra os pés no outono
de plátanos os lábios
num telhado a onda à beira da janela
e tu finalmente definida nesse corpo
                                                   saída da sombra e da floração
ajoelhados lado a lado e a água
escorrendo da nossa
cabeça mais tarde recebendo
a bênção de pétalas de rosas

e aqui estou estendido na alvura dos lençóis
desta página         amanhece como uma sonata lenta
um soneto que se repete         um mantra
para a abertura da consciência

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