quinta-feira, 1 de junho de 2017

Jean-Luc Nancy - Noli me tangere. cap. Em parceria (cont.)

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Para terminar, se Jesus diz que parte «em direcção ao Pai», isso significa que ele parte,1 absolutamente: o «pai» (com ou sem maiúscula: o grego não a prescreve aqui) não é outro senão o ausente, o arreigado (retranché), precisamente o oposto a «meus irmãos», os presentes, aqueles que a mulher pode e deve ir procurar. Ele parte para o ausente, para o remoto: ele ausenta-se, ele acosta nessa dimensão de onde só provém a glória,2 ou seja o brilho maior que a presença, a radiação de um excesso sobre o dado, o disponível, o deposto. Se ele pôde dizer: «Quem me viu, viu o Pai», este último não é pois nem um outro nem algures, mas é, aqui e agora, aquele que não se vê e contudo brilha, aquele que não se encontra na luz mas por trás dela. É porque esta glória brilha apenas na medida em que é recebida e transmitida: «Nós os quais, de rosto desvelado, reflectimos a glória do Senhor, nós somos transfigurados nessa mesma imagem, de glória em glória, como pelo espírito do Senhor.»3
A ressurreição não é um retorno à vida. Ela é a glória no seio da morte: uma glória obscura na qual a iluminação se confunde com a treva do túmulo. No lugar do contínuo da vida passando à morte, trata-se do descontínuo de uma outra vida na ou da morte. Se Jesus disse, no episódio de Lázaro: «Eu sou a ressurreição»,4 ele significava bem com isso que a ressurreição não é um processo de regeneração (semelhante àquele das mitologias como as de Osíris ou de Diónisos), mas que ela consiste ou melhor que tem lugar na relação com aquele que diz: «Eu sou a ressurreição.» O que segue no versículo declara: «Quem confia em mim, esteja ele morto, viverá.» Confiar nele, ser, pois, na fé, não é crer que possa haver regeneração do cadáver: é assegurar-se com firmeza na confiança de um lugar antes da morte (c’est se tenir avec fermeté dans l’assurance d’une ténue devant la mort). Esse «lugar» (tenue) realiza propriamente a anastasis, a «ressurreição», ou seja o levantamento (relèvement) ou a elevação («insurreição» é igualmente um sentido possível do termo grego).5 Nem regeneração, nem reanimação, nem palingénese, nem renascimento, nem revivescência, nem reencarnação: mas a elevação (soulèvement), mas a ascensão6 (la levée) ou bem o levantar7 (le lever) enquanto verticalidade perpendicular à horizontalidade do túmulo – não o deixando, não o reduzindo ao nada, mas afirmando nele o lugar (tenue) (como também a guarda (retenue)) de um intocável, de um inacessível.
Esta leveza8 (levée) não é um «render»9 (relève) no sentido dado a essa palavra por Derrida para traduzir o Aufhebung hegeliano: ela não transporta a vida suprimida à potência de uma vida superior. Ela não dialectiza nem mediatiza a morte: ela eleva (y fait lever) a verdade de uma vida, de toda uma vida enquanto mortal e de cada vida enquanto singular. Verdade vertical, incomensurável na ordem horizontal na qual a vida morta se decompõe em pedaços de matéria. Incomensurável igualmente a toda a representação de uma passagem de uma vida a outra: com a ressurreição, não existem mais mortos que vivam num reino das sombras, não mais almas penadas errando próximo de um Letes.10
No episódio de Lázaro, o morto sai do túmulo ligado nas suas ligaduras e envolto na mortalha: não é uma cena de um filme fantástico, é uma parábola da leveza recta no seio da morte. Não uma erecção – nem em sentido fálico, nem em sentido monumental, embora esses dois sentidos possam ser tomados e trabalhados neste contexto – mas um ter-se-de-pé frente à e na morte. Qualquer coisa entra em consonância aqui com o heroísmo trágico do «morrer de pé»,11 com a vida que se mantém na morte do espírito hegeliano.12 A diferença que se introduz contudo – uma diferença estreitíssima, difícil de discernir – é que a anastasis não é ou não provém de si, do próprio sujeito, mas do outro: ela chega a ele pelo outro, ou melhor ela rende (relève) o outro nele. É o outro que se ergue e ressuscita em mim morto. É o outro que ressuscita por mim, muito mais que me ressuscita. Noutros termos então: «eu estou ressuscitado» não significa uma acção que realizei, mas uma passividade sofrida ou recebida. «Eu estou morto» (a frase impossível) e «eu estou ressuscitado» dizem a mesma coisa, a mesma passividade e a mesma paixão, como se dizer «eu estou morto» fosse preciso ser «ressuscitado» como pretende a representação de uma religião para os prodígios naturais. Mas a coincidência de dois enunciados testemunham a impossibilidade que a morte, tão pouco como a vida, seja simplesmente idêntica a si-mesma e contemporânea de si: nem morto, nem vivo, simplesmente um presente.13 Mas sempre uma apresentação de um ao outro, em direcção ao outro ou no outro: a apresentação de uma partida.
Numa palavra: dois sentidos tornados inextricáveis da nossa expressão a leveza/elevação (levée) do corpo.14

1 Em itálico no original (N.T.).
2 Em itálico no original (N.T.).
3 Paulo, 2 Co 3, 18.
4 João 11,25. Certos manuscritos acrescentam «e a vida» (ego eimi hè anastasis kai hè zôé).
5 O termo hebraico qûm, que indica a leveza (la levée) ou o levantamento (relèvement), figura nos textos onde se anuncia um pensamento judeu da «ressurreição», e é dele que veio o uso da palavra anastasis bem como do verbo egeirô, de sentido vizinho.
6 Em itálico no original (N.T.).
7 Em itálico no original (N.T.).
8 Em itálico no original (N.T.).
9 Impossível de manter aqui o jogo de aliteração tão comum entre os desconstrucionistas.
10 A comparação de um ressuscitado a um «espectro» encontra-se ocasionalmente em certos textos apócrifos (p. ex. A Epístola aos apóstolos, 11), embora rara, e ausenta-se do corpo canónico.
11 Não se trata da solitária imagética da bravura guerreira, mas do facto que a morte trágica é sempre uma morte primeira, ou seja violenta e não chegando ao fim de um processo mórbido: o homem é atingido ou atinge-se, a mulher enforca-se. É preciso lembrar? Antígona é uma prisioneira viva, primeiramente, com Hémnon, na caverna que se deverá tornar seu túmulo, e é enforcada que será encontrada por Creonte voltando atrás demasiado tarde na sua condenação.
12 «A vida do espírito não é a vida que se assusta frente à morte e se preserva pura da decrepitude, é pelo contrário aquela que a suporta e nela se conserva» (Fenomenologia do Espírito …)).
13 Em itálico no original (N.T.).

14 Em itálico no original (N.T.).

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