Leiamos agora todo o
texto do episódio:
Maria chega ao
túmulo. Ela encontra-o vazio e dois anjos ocupam-no.
Eles dizem-lhe:
Mulher, porque choras tu? Ela diz-lhes: Porque levaram o meu Senhor e
não sei onde o puseram;
Com estas
palavras ela virou-se. Vê Jesus que ali está, mas ela não sabia
que era Jesus.
Jesus diz-lhe:
Mulher, porque choras tu? Que procuras tu? Ela pensa que é o
jardineiro e diz-lhe: Senhor, se tu o tens, diz-me onde o puseste que
eu levá-lo-ei.
Jesus diz-lhe:
Maria! Ela vira-se e ele diz-lhe em hebreu: Rabbouni! (ou seja,
mestre).
Jesus diz-lhe:
Não me toques, pois ainda não subi em direcção ao Pai, mas vai
ter com os meus irmãos e diz-lhes que subo em direcção ao Pai, meu
Deus e teu Deus.
Maria Madalena
vem anunciar aos discípulos que viu o Senhor e o que ele lhe disse.1
A cena está
organizada à volta da visão: Maria primeiro viu que a pedra tumular
foi levada, e toda a cena se desenrola, a partir daí, numa relação
com a tumba vazia, o desejo e o temor de ir ver. Maria verá Jesus,
esse deixa-se ver por ela, porque ela soube ver na tumba. Ver o que
não está para ver, ver o que se dá a ver apenas ao olhar capaz,
aos olhos que já souberam ver na noite do invisível, tal é a
questão da qual Noli
me tangere
apresenta o motivo central: «Tu vês, mas essa vista não é, não
pode ser um tocar, se o próprio tocar foi figurar a imediaticidade
de uma presença, tu vês aquilo que não está presente, tu tocas o
intocável que se encontra fora do alcance das tuas mãos como também
aquele que tu vês frente a ti deixa logo esse lugar de encontro.»
Se os pintores se
encontram presos a esse episódio na qual a importância teológica é
desde logo ténue quanto aos grandes símbolos da fé (anunciação,
nascimento, paixão, ressurreição «propriamente dita»,2
ascensão) é porque põe em cena um exercício particularmente
delicado e complexo da visão. De uma parte tudo tem lugar frente ao
túmulo vazio, num retorno do olhar do túmulo, e doutra parte a
visão oferecida é uma visão complexa, indecisa em primeiro lugar
depois complementada pela palavra e enfim posta à distância, não
podendo ver o tempo de saber que necessita para deixar partir essa
visão (ne
pouvant voir que le temps de savoir qu’il faut laisser partir cette
vision).
Assim que os
pintores representam «a própria» ressurreição, eles representam
um episódio que em lado algum foi dado a ver, nem mesmo sugerido no
Evangelho. As suas pinturas são pois uma tentativa de enfrentar o
invisível de frente, de qualquer modo, e para conduzir o gesto de
ver e de fazer ver quase até ao brilho do olhar e a incandescência
da tela (como é exemplarmente o caso de Grünewald). Ao mesmo tempo,
o espectáculo acompanhado bastas vezes pelo brilho e o atordoamento
dos guardas colocados frente ao túmulo: a ressurreição é proposta
como o espectáculo de uma força prodigiosa que rola a pedra e
esmaga os homens, jogando-se com as precauções tomadas pelos padres
e fariseus a fim de impedir os discípulos de roubar o corpo e de
simular a ressurreição.3
A pintura quer elevar-se (s’y
hausser)
à medida da força cegante e da colisão silenciosa de onde surgiu,
soberano, o primeiro dia do mundo salvo.
Mas as cenas
textuais onde surge o ressuscitado são contrariamente mais
discretas, menos extravagantes4
e precisamente, ao contrário, organizadas ao redor do carácter
«natural» mais que «sobrenatural», familiar mais que
espectacular, da vinda do ressuscitado.5
Assim que há o espanto e o terror, é quando os discípulos pensam
ver um espírito, e Jesus os convida pois a tocá-lo para assegurar
que ele está bem ali em carne e em osso. A crença aguarda o
espectáculo e inventa a necessidade. A fé consiste em ver e em
escutar aí onde nada é excepcional para o olho e a orelha
ordinárias. Ela sabe ver e ouvir sem
tocar (sans
y toucher).
Tal é igualmente o conteúdo do episódio de Emaús:6
os dois discípulos conversam longamente com o ressuscitado sem o
identificar, mas mal o reconhecem no partir do pão, ele desaparece
rapidamente das suas vistas.
Entre as cenas –
fora do texto – da ressurreição e as cenas do encontro com o
ressuscitado, existem toda a diferença que separa uma imaginação
misturando traços do simbólico, da alegoria e do misticismo,
solicitando a representação, e uma narração que convida a
compreender aquilo que nenhuma representação pode apoiar, ou seja
compreender que nenhuma presença apresenta o afastamento onde a
verdade se ausenta da própria presença.
Nesse ponto de
vista, Noli
me tangere
forma a cena mais subtil e mais contida (é caso de o dizer). Porque
os pintores souberam discernir não a visão extática de um
prodígio, mas uma intriga delicada que se entrelaça entre o visível
e o audível, cada um chamando e repelindo o outro, cada um dos dois
tocando no outro e afastando de si. Rembrandt é aquele que agarra
essa intriga com a maior nitidez. Içando o túmulo numa elevação
do jardim, ele coloca ao mesmo nível, frente a nós, a abertura
sombria da caverna à direita, à esquerda a potente iluminação de
um socalco na qual a brancura dourada absorve a vestimenta de Jesus
enquanto o manto de Madalena parece fluir da sombra e se derrama
sobre um tecido (talvez o sudário vazio). Entre os dois olhos, a
partilha da sombra e da luz desenha o beiral da rocha na qual a tumba
está oca e divisa exactamente o rosto de Madalena apanhado no
momento de volta, no instante em que ela descobre aquele que ela
ainda não reconhece.7
Os seus olhos voltam-se para ele que a observa também, mas o pintor
faz de tal modo que nos oferece os seus rostos quase de frente, tudo
como esse anjo da esquerda, também ele virado para Jesus, enquanto o
anjo da direita – o nosso representante na tela – contempla toda
a cena.
Rembrandt, para
dizer a verdade, e como já antes referi, não intitulou a sua obra
Noli
me tangere,
e situa a cena, nomeada Cristo
e Maria Madalena no túmulo,
um instante antes dessa palavra, não sem pois indicar subtilmente,
como veremos mais tarde, o motivo de tocar entre as duas personagens.
Mas nesse primeiro momento da cena, é impossível o contacto do dia
e da noite que ocupa a pintura: a sua tangência sem contacto, a sua
contiguidade sem mistura, a sua proximidade sem intimidade. Assim se
descobre isolada toda a magia sobrenatural: o ressuscitado não sai
do túmulo, mas vem de outro lado, tal como o dia não vem da noite,
mas confronta-o sem por isso dissipar a obscuridade profunda da
caverna. O mistério da ressurreição não é evocar uma qualquer
glorificação da carne recomposta (como quando Cristo é figurado o
mais das vezes despido, por Ticiano, Perugino ou Balthazar de
Eschave): ele ilumina-se aí onde se encontra sepultado, num ponto de
tangência recolhido por trás da tela como no silêncio do texto, aí
onde luz e sombra se trocam sem se tocar, se partilham enquanto se
repelem – aí onde uma é a verdade da outra sem mediação nem
conversão de uma na outra.
Dürer (do qual
muitos detalhes levam a pensar que Rembrandt conhecia a gravura)
oferece uma versão talvez mais subtil do mistério (se o mistério é
o que se ilumina por si, aquele que brilha do fundo da sombra, ou bem
aquele que, da sombra, brilha). O sol que surge estriando a noite com
os seus raios ilumina as costas de Jesus e o seu braço direito cuja
mão vai tocar Maria, com a face iluminada e as costas na sombra,
inversamente ao seu Senhor. O corpo ressuscitado permanece terrestre
e na sombra: a sua glória não lhe pertence e a ressurreição não
é uma apoteose, é pelo contrário a contínua kénose,
é no vazio ou no esvaziamento da presença onde brilha a luz. E essa
luz não preenche o vazio: ela esvazia-o ainda mais, como se pode
arriscadamente decifrar na proximidade, em Dürer, entre o sol e a pá
do jardineiro (do coveiro?). A glória do corpo glorioso irradia como
a brecha do túmulo, e não contra ela. (Na tela de Fontana Lavinia,
pode-se sensivelmente acreditar que é esse paradoxo que se encontra
representado).
1
Jn 20, 13-18. O episódio da manifestação a Tomás – aquele que
vai tocar as chagas – segue imediatamente. (Abstenho-me, aqui, de
todo o comentário sobre a tradução, bem como sobre as comparações
com os sinópticos, além daqueles que possam ser necessários para
o meu propósito – como também, em relação aos quadros, não
pretendo um comentário de historiador de arte e chega-me deixar
abandonados este ou aquele aspecto das obras.
2
Se a expressão é possível! Compreendo, bem entendido, o Cristo
saindo do túmulo, tal como o representam entre muitos Piero,
Grünewald ou Mategna. Mas essa própria representação deveria ser
analisada, como vou sugerir brevemente, para que possa ser mostrado
aí também que a apreensão pictural está a mais das vezes
afastada da figuração de uma «regeneração»: encontra-se em
particular o motivo de «suporte» («se tenir debout»), no
Cristo que sai da tumba todo erecto, como Lázaro, e não como um
adormecido ou doente que saiu de sua cama. E repito novamente: não
uma erecção, mas um revolutear (pivotement) dos planos, do
horizontal para a vertical, uma mudança de perspectiva sobre a
mesma tumba e a mesma morte. No horizonte da vida acabada (o
«horizonte», é o limite) se sobrepõe, sem se opor, uma infinita
leveza (levée). Subir nas alturas e descer nas profundezas,
é ir além da mesma altitudo, segundo o duplo sentido do
termo. Mas a dupla e vertiginosa «altitude» reenvia igualmente à
proximidade: aqui mesmo, à mão (à portée de la main),
embora não podendo ser abraçado, está a verdade. (cf.
Paulo, Rm 10,6-8 e a sua fonte em Dt 30, 11-14).
3
Mt 27, 62-66. Este episódio encontra-se ausente nos outros
evangelhos.
4
Em Mt 28, 2-3, é um anjo que é deslumbrante, mas não o
ressuscitado, que não se vê.
5
Lc 24, 36-43, no qual o episódio de Tomás, em João, é um
desenvolvimento sobre aquele que voltaremos. Mas o termo «natural»
não deve ser compreendido aqui no sentido de um milagre escusado
será dizer – ou seja, de um «sobrenatural» tendo a «natureza»
à banda desafiando a sua própria ordem. Quero indicar, pelo
contrário, que nada aqui transgride a natureza, tudo se
manifestando de outro modo que a «natureza» ou a «sobrenatureza».
6
Mc 16, 12-13 e Lc 24, 13-35.
7
Assim que ela o reconheceu, quem vê ela? Certamente sempre um
jardineiro, pelo seu lado (selon sa ténue) (que Rembrandt
figura com precisão). E consequentemente sem dúvida também sempre
o jardineiro, com efeito. É tanto pela sua boca, pela boca
de não interessa qual homem vivo, que Cristo morto declara a sua
partida.
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