segunda-feira, 29 de maio de 2017

Jean-Luc Nancy - Noli me tangere (cont.)

Em parceria

Um episódio do evangelho de João é particularmente apropriado para dar o exemplo mesmo dessa emergência na qual se joga um desaparecimento. Não é uma parábola pronunciada por Jesus, é uma cena da parábola geral que forma a sua vida e a sua vida. Nessa cena ele fala, ele dirige-se, e ele parte. Ele fala para dizer que se encontra lá e que se vai embora em breve. Ele fala para dizer ao outro que ele não está onde eles pensam, que ele já está noutro lugar, estando então bem presente: aqui, mas não mesmo aqui. O outro que compreenda. O outro que veja e entenda.
Esse episódio é conhecido segundo o título Noli me tangere, particularmente na pintura, onde foi tratado bastantes vezes – muito menos contudo, obviamente, que os grandes episódios canónicos da Anunciação ou da Crucificação, e mesmo menos que o episódio de Emaús, ao qual se aparenta.1 É sem dúvida a única «tábua» que se intitula assim por uma palavra dita (por vezes, é verdade, mas raramente, um pintor escolheu intitular, como Rembrandt, Cristo e Maria Madalena no túmulo, situando algures o instante dessa cena muito ligeiramente antes da palavra «noli»: querendo talvez evitar ou deslocar o motivo do toque).2 Outras palavras de Jesus (ou de qualquer outras personagens), embora tenham acedido elas também ao estatuto de citação exemplar e de sintagma fixo (como «Desce, Zacarias!» ou bem «Ergue-te, Lázaro!»), não se tornaram todavia títulos de cenas mas de motivos picturais. Noli me tangere, ao contrário, é tão bem recebido que é possível dizer-se «um Noli me tangere» como se diz «uma Ressurreição» ou «uma Ceia de Emaús». Melhor ainda, a fórmula (como designá-la? ela é mais que uma palavra, sem ser um veredicto…) conheceu a fortuna de ser por vezes tomada a modo de título para obras sem relação manifesta com a cena evangélica,3 tal como uma planta tem a honra de ser chamada.4
Não procuremos logo de imediato dar razão a esse destino tão favorável, que aliás é sem dúvida um dos menos religiosos para ser uma palavra dos Evangelhos: Noli me tangere – «Não me toques» – evoca uma interdição de contacto, que se trata de uma sensualidade ou de violência, uma queda, uma fuga amedrontada ou púdica, mas nada que em primeiro lugar ofereça um carácter propriamente religioso ou sagrado, embora menos teológico ou espiritual, contanto que a menção dessas palavras não são acompanhadas da sua referência expressa ao contexto no qual João as escreveu. Tudo se passa um tanto, nesse caso, como se não tratasse primeiramente de uma palavra tirada do Evangelho, mas bem mais de uma palavra que o Evangelho mesmo teria tomado algures, da língua comum – um pouco à maneira como ele toma as histórias comuns (um enólogo, um jovem jogador, um viajante atacado) para fazer parábolas.
«Não me toques» não constitui uma formação linguística notável, nem releva qualquer tipo de dialecto. Mas é uma frase que só por si vale como indicação de um contexto pelo menos difuso. Assim que uma frase homóloga como «não me fales» permanece suspensa na espera de um contexto («preciso de silêncio», ou «eu não quero ouvir», ou bem ao contrário «já te entendi»), «não me toques» encontra-se ao menos necessariamente num registo de aviso antes de um perigo («vais magoar-me» ou bem «vou magoar-te», «tu pões em jogo a minha integridade» ou então «defender-me-ei»). Para dizer palavra por palavra – difícil de evitar –, «não me toques» é uma frase que toca, que não pode não tocar, mesmo isolada de todo o contexto. Ela enuncia qualquer coisa do toque em geral ou ela toca no ponto sensível do tocar: nesse ponto sensível que o constitui por excelência (ele é em suma «o» ponto do sensível) e ao que nele forma o ponto sensível. Ora esse ponto é precisamente o ponto onde o tocar não toca, não deve tocar para exercer o seu toque (a sua arte, o seu tacto, a sua graça): o ponto em que o espaço sem dimensão que separa aquilo que o tocar junta, a linha que dista (écarte) o tocar do tocado e portanto a tocada (la touche) dela mesma.5
Se a cultura e a arte se apreendem nesta frase, é porque sem dúvida, ao retomar do Evangelho qualquer coisa que este último tinha procurado fora dele, nesse espaçamento (écartement) intrínseco da tocada (de la touche), nessa fronteira (bord-à-bord) intransponível que igualmente fez do toque, tal como a relevou Freud,6 o maior desafio do tabu enquanto estrutura constitutiva da sacralidade. O intocável7 – na qual a figura do pária8 hindu carrega para os nossos olhos Ocidentais a carga mais marcante – encontra-se presente em toda a parte onde existe o sagrado, isto é, o retiro, da distância, da distinção e do incomensurável, com a emoção que os acompanha (ou que os constitui).
É notável que Édipo – outra figura inaugural, com Jesus, da nossa (des)sacralidade ocidental, senão a sua outra figura, o seu duplo, por excelência –, assim que se afasta por entre o bosque perto de Colona onde irá desaparecer, diz aos que o seguem: «Venham, sem me tocar…».9
Ora num certo sentido nada nem ninguém é intocável no cristianismo, quando o próprio corpo de Deus é dado a comer e a beber. Que diversos rituais, sobretudo católicos e ortodoxos, têm participado nas ordens religiosas mais comuns com proibições do tocar, ou tocar sem as devidas precauções purificadoras, não impede que o seu pensamento ou o seu movimento essencial não releve esse fim. De um certo modo, pelo contrário, o cristianismo foi a invenção da religião do toque, do sensível, da presença imediata do corpo e do coração. A esse título, a cena do Noli me tangere será uma excepção, um hapax teológico. Ou bem que seria necessário pensar em conjunto, de um modo oximórico ou paradoxal, as duas frase «Hoc est corpus meum» e «Noli me tangere»: e é talvez com efeito exactamente desse paradoxo que se trata.
Ora o que é propriamente excepcional nessa cena, considerada no interior da narração evangélica, é a seguinte característica: aqui, o Cristo afasta (écarte) expressamente o tocar do seu corpo ressuscitado. Em nenhum outro momento Jesus interditou ou recusou que se lhe tocasse. Aqui, na manhã de Páscoa, e logo da sua primeira aparição, ele retém ou previne o gesto de Maria Madalena. Aquilo que não deve ser tocado, é o corpo ressuscitado. Nós podemos igualmente compreender que ele não deve ser tocado porque ele não pode ser: ele não é para ser tocado (il n’est pas à toucher). Isso não significa, portanto, que se trata de um corpo aéreo ou imaterial, espectral ou fantasmagórico. O que segue no texto, sobre o qual retornaremos mais tarde, mostrará bem que esse corpo é tangível. Mas aqui não é enquanto tal que se apresenta. Ou melhor, ele escapa-se a um contacto ao qual se podia prestar. O seu ser e a sua verdade de ressuscitado estão nesse recuo, nesse retraimento que somente dá a medida da tocada (de la touche) do que deve ser: não tocando esse corpo, tocar a sua eternidade. Não chegar ao contacto da sua presença manifesta, aceder à sua presença real, que consiste na sua partida.
No original grego de João, a frase de Jesus se diz: «Mè mou haptou.» Num emprego semelhante, o verbo haptein – «tocar» – pode igualmente tomar o sentido de «reter, parar» (retenir, arrêter). O Cristo não pode ser retido, pois ele parte: ele diz imediatamente, ainda não se juntou ao Pai, e ele parte em sua direcção. O tocar, o reter, isso será a aderência à presença imediata, bem como será crer no toque (crer na presença do presente), será faltar a partida segundo a qual a tocada e a presença vêm a nós. A «ressurreição» encontra assim somente o seu sentido não religioso. Aquilo que para a religião é recomeço de uma presença, portanto a segurança fantasmática de uma imortalidade, revela-se aqui como não sendo outra coisa senão a partida na qual a presença se ergue a verdade, portanto o seu sentido segundo essa partida. Como ela vem, ela parte: ou seja, ela não é no sentido em que qualquer coisa é colocada na presença, imóvel, idêntica a si, disponível a um uso ou a um conceito. A «ressurreição» é a surreição, o surgimento do indisponível, do outro e do desaparecer no corpo mesmo e como o corpo.10 Não é um passo de magia, é completamente o contrário: o corpo morto permanece morto e é ele que faz o «vazio» do túmulo, mas o corpo que mais tarde a teologia nomeará de «glorioso» (quer se dizer, brilhando do brilho (l’éclat) do invisível) revela que esse vazio é bem evidentemente o da presença. Não, nada se encontra disponível aqui: não procures apoderar-te de um sentido dessa vida finita, não procures tocar nem reter o que essencialmente se afasta e afastando-se te toca da sua própria distância (nos dois sentidos da expressão: toca-te depois e com a sua distância), como o que, decepcionando definitivamente as tuas expectativas, faz surgir diante de ti, para ti, aquilo mesmo que não surge, aquilo que na surreição ou na insurreição é uma glória que se empenha a enganar e a afastar a tua mão estendida a ela. Pois o seu brilho (éclat) não é outra coisa senão o vazio do túmulo. O «ressuscitado» não mediatiza um pelo outro: ele expõe (ele «revela») como eles são o mesmo ausentamento (absentement), o mesmo brilho (éclatement) que não podemos sonhar em tocar, porque é ele, e só ele, que nos toca no mais vivo: no ponto da morte.
A morte não está «derrotada», aqui, no sentido em que a religião quer apressadamente dar a esta palavra. Ela é desmesuradamente ampliada, ela é subtraída à limitação do falecimento isolado. O túmulo vazio ilimita a morte na partida do morto. Esse não se encontra «morto» de uma vez por todas: ele morre indefinidamente, ele é aquele que não cessa de partir. Aquele que diz: «Não me toques» pois a sua presença é aquela de um desaparecimento indefinidamente renovado ou prolongado. Não me toques, não me retenhas, não penses nem em apreender-me nem em alcançar-me, pois eu parto em direcção ao Pai, ou seja agora e sempre em direcção à própria potência da morte e me distancio nela, mergulho no seu nocturno brilho nesta manhã de primavera. Estou já de partida, eu estou nessa partida, o meu ser consiste nisso e a minha palavra é esta: «Eu, a verdade, parto.»11

***

1 É igualmente aparentada àquela de Tomás tocando as chagas de Jesus: mas não me é possível avaliar o número de quadros consagrados a cada episódio. A diferença das quantidades reenvia tanto à importância teológica ou espiritual das cenas como ao seu impacto na ordem figurativa – ou ao que elas apelam ou interpelam da pintura. Mas no caso preciso do Noli me tangere pode jogar igualmente uma ambiguidade sensível, e que falaremos aqui, tocando a conotação sensual da cena e da personagem de Maria Madalena.
2 Em itálico no original (N.T.).
3 É o caso, por exemplo, duma peça de teatro célebre de Philippin José Rizal, igualmente transposta para o ecrã e tornada «musical», bem como de numerosas instalações de artistas contemporâneos (Arman, Seyed Alavi ou Sam Taylor Wood, entre outros), de um livro de narrativas de abusos sexuais (Marie L.), de um filme de Jacques Rivette (Out 1: Noli me tangere), ou então de coreografias (Ch. Vincent), de um poema de Wyatt para Ana Bolena e até divisas de armas ou bem uma bandeira secessionista em 1860, e mesmo a um nome de gato de pedigree. Na medicina por vezes, foi o nome para certos tumores que seria melhor não tocar se se pudesse efectuar a sua remoção total, com medo de excitar a sua actividade. Poucas frases do Evangelho estão desta forma disseminadas. Podemos mesmo encontrar esta, num conto de Villiers de l’Isle-Adam, Maryelle, no qual a heroína é uma mulher galante e que começa assim: «O seu desaparecimento de Mabille, o seu novo visual, a discreta elegância das suas roupas escuras, os seus ares, enfim, de noli me tangere…» (Quanto à música, ver a nota 78)
4 Impatiens noli tangere, uma variedade da família das impacientes (balsâmicas), plantas que reagem ao contacto. A Impatiens noli tangere perde as suas sementes mal é tocada.
5 Toda esta problemática do tocar está evidentemente em dívida quanto ao trabalho de Jacques Derrida no Le Toucher, Jean-Luc Nancy (Galilée, 2001); nesse livro, a propósito, o episódio do Noli me tangere é mencionado ao longo de uma evocação do papel do tocar em geral na lenda crística, evocação ela mesma inscrita numa relação com a questão que outrora nomeei «desconstrução do cristianismo», questão à qual Derrida entende tocar com uma distância céptica ou rabínica que eu não desespero de reduzir um pouco.
6 Cf. Totem e Tabu, II, 2
7 Em itálico no original (N.T.).
8 Em itálico no original (N.T.).
9 Sófocles, Édipo em Colona, v.1544 (Sófocles emprega o verbo psauô, mais raro e menos usado em prosa que haptô do qual falamos; o significado do segundo situa-se mais no registo do «anexar», enquanto o primeiro no registo de «friccionar».
10 Em itálico no original (N.T.).
11 Em itálico no original (N.T.).

Sem comentários: