Em parceria
Um episódio do
evangelho de João é particularmente apropriado para dar o exemplo
mesmo dessa emergência na qual se joga um desaparecimento. Não é
uma parábola pronunciada por Jesus, é uma cena da parábola geral
que forma a sua vida e a sua vida. Nessa cena ele fala, ele
dirige-se, e ele parte. Ele fala para dizer que se encontra lá e que
se vai embora em breve. Ele fala para dizer ao outro que ele não
está onde eles pensam, que ele já está noutro lugar, estando então
bem presente: aqui, mas não mesmo aqui. O outro que compreenda. O
outro que veja e entenda.
Esse episódio é
conhecido segundo o título Noli
me tangere,
particularmente na pintura, onde foi tratado bastantes vezes –
muito menos contudo, obviamente, que os grandes episódios canónicos
da Anunciação ou da Crucificação, e mesmo menos que o episódio
de Emaús, ao qual se aparenta.1
É sem dúvida a única «tábua» que se intitula assim por uma
palavra dita (por vezes, é verdade, mas raramente, um pintor
escolheu intitular, como Rembrandt, Cristo
e Maria Madalena no túmulo,
situando algures o instante dessa cena muito ligeiramente antes da
palavra «noli»:
querendo talvez evitar ou deslocar o motivo do toque).2
Outras palavras de Jesus (ou de qualquer outras personagens), embora
tenham acedido elas também ao estatuto de citação exemplar e de
sintagma fixo (como «Desce, Zacarias!» ou bem «Ergue-te,
Lázaro!»), não se tornaram todavia títulos de cenas mas de
motivos picturais. Noli
me tangere,
ao contrário, é tão bem recebido que é possível dizer-se «um
Noli
me tangere»
como se diz «uma Ressurreição»
ou «uma Ceia
de Emaús».
Melhor ainda, a fórmula (como designá-la? ela é mais que uma
palavra, sem ser um veredicto…) conheceu a fortuna de ser por vezes
tomada a modo de título para obras sem relação manifesta com a
cena evangélica,3
tal como uma planta tem a honra de ser chamada.4
Não procuremos logo
de imediato dar razão a esse destino tão favorável, que aliás é
sem dúvida um dos menos religiosos para ser uma palavra dos
Evangelhos: Noli
me tangere
– «Não me toques» – evoca uma interdição de contacto, que se
trata de uma sensualidade ou de violência, uma queda, uma fuga
amedrontada ou púdica, mas nada que em primeiro lugar ofereça um
carácter propriamente religioso ou sagrado, embora menos teológico
ou espiritual, contanto que a menção dessas palavras não são
acompanhadas da sua referência expressa ao contexto no qual João as
escreveu. Tudo se passa um tanto, nesse caso, como se não tratasse
primeiramente de uma palavra tirada do Evangelho, mas bem mais de uma
palavra que o Evangelho mesmo teria tomado algures, da língua comum
– um pouco à maneira como ele toma as histórias comuns (um
enólogo, um jovem jogador, um viajante atacado) para fazer
parábolas.
«Não me toques»
não constitui uma formação linguística notável, nem releva
qualquer tipo de dialecto. Mas é uma frase que só por si vale como
indicação de um contexto pelo menos difuso. Assim que uma frase
homóloga como «não me fales» permanece suspensa na espera de um
contexto («preciso de silêncio», ou «eu não quero ouvir», ou
bem ao contrário «já te entendi»), «não me toques» encontra-se
ao menos necessariamente num registo de aviso antes de um perigo
(«vais magoar-me» ou bem «vou magoar-te», «tu pões em jogo a
minha integridade» ou então «defender-me-ei»). Para dizer palavra
por palavra – difícil de evitar –, «não me toques» é uma
frase que toca, que não pode não tocar, mesmo isolada de todo o
contexto. Ela enuncia qualquer coisa do toque em geral ou ela toca no
ponto sensível do tocar: nesse ponto sensível que o constitui por
excelência (ele é em suma «o» ponto do sensível) e ao que nele
forma o ponto sensível. Ora esse ponto é precisamente o ponto onde
o tocar não toca, não deve tocar para exercer o seu toque (a sua
arte, o seu tacto, a sua graça): o ponto em que o espaço sem
dimensão que separa aquilo que o tocar junta, a linha que dista
(écarte)
o tocar do tocado e portanto a tocada (la
touche)
dela mesma.5
Se a cultura e a
arte se apreendem nesta frase, é porque sem dúvida, ao retomar do
Evangelho qualquer coisa que este último tinha procurado fora dele,
nesse espaçamento (écartement)
intrínseco da tocada (de
la touche),
nessa fronteira (bord-à-bord)
intransponível que igualmente fez do toque, tal como a relevou
Freud,6
o maior desafio do tabu enquanto estrutura constitutiva da
sacralidade. O intocável7
– na qual a figura do pária8
hindu carrega para os nossos olhos Ocidentais a carga mais marcante –
encontra-se presente em toda a parte onde existe o sagrado, isto é,
o retiro, da distância, da distinção e do incomensurável, com a
emoção que os acompanha (ou que os constitui).
É notável que
Édipo – outra figura inaugural, com Jesus, da nossa
(des)sacralidade ocidental, senão a sua outra figura, o seu duplo,
por excelência –, assim que se afasta por entre o bosque perto de
Colona onde irá desaparecer, diz aos que o seguem: «Venham, sem me
tocar…».9
Ora num certo
sentido nada nem ninguém é intocável no cristianismo, quando o
próprio corpo de Deus é dado a comer e a beber. Que diversos
rituais, sobretudo católicos e ortodoxos, têm participado nas
ordens religiosas mais comuns com proibições do tocar, ou tocar sem
as devidas precauções purificadoras, não impede que o seu
pensamento ou o seu movimento essencial não releve esse fim. De um
certo modo, pelo contrário, o cristianismo foi a invenção da
religião do toque, do sensível, da presença imediata do corpo e do
coração. A esse título, a cena do Noli
me tangere
será uma excepção, um hapax
teológico. Ou bem que seria necessário pensar em conjunto, de um
modo oximórico ou paradoxal, as duas frase «Hoc
est corpus meum»
e «Noli
me tangere»:
e é talvez com efeito exactamente desse paradoxo que se trata.
Ora o que é
propriamente excepcional nessa cena, considerada no interior da
narração evangélica, é a seguinte característica: aqui, o Cristo
afasta (écarte)
expressamente o tocar do seu corpo ressuscitado. Em nenhum outro
momento Jesus interditou ou recusou que se lhe tocasse. Aqui, na
manhã de Páscoa, e logo da sua primeira aparição, ele retém ou
previne o gesto de Maria Madalena. Aquilo que não deve ser tocado, é
o corpo ressuscitado. Nós podemos igualmente compreender que ele não
deve ser tocado porque ele não pode ser: ele não é para ser tocado
(il
n’est pas à toucher).
Isso não significa, portanto, que se trata de um corpo aéreo ou
imaterial, espectral ou fantasmagórico. O que segue no texto, sobre
o qual retornaremos mais tarde, mostrará bem que esse corpo é
tangível. Mas aqui não é enquanto tal que se apresenta. Ou melhor,
ele escapa-se a um contacto ao qual se podia prestar. O seu ser e a
sua verdade de ressuscitado estão nesse recuo, nesse retraimento que
somente dá a medida da tocada (de
la touche)
do que deve ser: não tocando esse corpo, tocar a sua eternidade. Não
chegar ao contacto da sua presença manifesta, aceder à sua presença
real, que consiste na sua partida.
No original grego de
João, a frase de Jesus se diz: «Mè
mou haptou.»
Num emprego semelhante, o verbo haptein
– «tocar» – pode igualmente tomar o sentido de «reter, parar»
(retenir,
arrêter).
O Cristo não pode ser retido, pois ele parte: ele diz imediatamente,
ainda não se juntou ao Pai, e ele parte em sua direcção. O tocar,
o reter, isso será a aderência à presença imediata, bem como será
crer no toque (crer na presença do presente), será faltar a partida
segundo a qual a tocada e a presença vêm a nós. A «ressurreição»
encontra assim somente o seu sentido não religioso. Aquilo que para
a religião é recomeço de uma presença, portanto a segurança
fantasmática de uma imortalidade, revela-se aqui como não sendo
outra coisa senão a partida na qual a presença se ergue a verdade,
portanto o seu sentido segundo essa partida. Como ela vem, ela parte:
ou seja, ela não é
no sentido em que qualquer coisa é colocada na presença, imóvel,
idêntica a si, disponível a um uso ou a um conceito. A
«ressurreição» é a surreição, o surgimento do indisponível,
do outro e do desaparecer no
corpo mesmo e como o corpo.10
Não é um passo de magia, é completamente o contrário: o corpo
morto permanece morto e é ele que faz o «vazio» do túmulo, mas o
corpo que mais tarde a teologia nomeará de «glorioso» (quer se
dizer, brilhando do brilho (l’éclat)
do invisível) revela que esse vazio é bem evidentemente o da
presença. Não, nada se encontra disponível aqui: não procures
apoderar-te de um sentido dessa vida finita, não procures tocar nem
reter o que essencialmente se afasta e afastando-se te toca da sua
própria distância (nos dois sentidos da expressão: toca-te depois
e com a sua distância), como o que, decepcionando definitivamente as
tuas expectativas, faz surgir diante de ti, para ti, aquilo mesmo que
não surge, aquilo que na surreição ou na insurreição é uma
glória que se empenha a enganar e a afastar a tua mão estendida a
ela. Pois o seu brilho (éclat)
não é outra coisa senão o vazio do túmulo. O «ressuscitado» não
mediatiza um pelo outro: ele expõe (ele «revela») como eles são o
mesmo ausentamento (absentement),
o mesmo brilho (éclatement)
que não podemos sonhar em tocar, porque é ele, e só ele, que nos
toca no mais vivo: no ponto da morte.
A morte não está
«derrotada», aqui, no sentido em que a religião quer
apressadamente dar a esta palavra. Ela é desmesuradamente ampliada,
ela é subtraída à limitação do falecimento isolado. O túmulo
vazio ilimita a morte na partida do morto. Esse não se encontra
«morto» de uma vez por todas: ele morre indefinidamente, ele é
aquele que não cessa de partir. Aquele que diz: «Não me toques»
pois a sua presença é aquela de um desaparecimento indefinidamente
renovado ou prolongado. Não
me toques, não me retenhas, não penses nem em apreender-me nem em
alcançar-me, pois eu parto em direcção ao Pai, ou seja agora e
sempre em direcção à própria potência da morte e me distancio
nela, mergulho no seu nocturno brilho nesta manhã de primavera.
Estou já de partida, eu estou nessa partida, o meu ser consiste
nisso e a minha palavra é esta: «Eu, a verdade, parto.»11
***
1
É igualmente aparentada àquela de Tomás tocando as chagas de
Jesus: mas não me é possível avaliar o número de quadros
consagrados a cada episódio. A diferença das quantidades reenvia
tanto à importância teológica ou espiritual das cenas como ao seu
impacto na ordem figurativa – ou ao que elas apelam ou interpelam
da pintura. Mas no caso preciso do Noli me tangere pode jogar
igualmente uma ambiguidade sensível, e que falaremos aqui, tocando
a conotação sensual da cena e da personagem de Maria Madalena.
2
Em itálico no original (N.T.).
3
É o caso, por exemplo, duma peça de teatro célebre de Philippin
José Rizal, igualmente transposta para o ecrã e tornada «musical»,
bem como de numerosas instalações de artistas contemporâneos
(Arman, Seyed Alavi ou Sam Taylor Wood, entre outros), de um livro
de narrativas de abusos sexuais (Marie L.), de um filme de Jacques
Rivette (Out 1: Noli me tangere), ou então de coreografias
(Ch. Vincent), de um poema de Wyatt para Ana Bolena e até divisas
de armas ou bem uma bandeira secessionista em 1860, e mesmo a um
nome de gato de pedigree. Na medicina por vezes, foi o nome para
certos tumores que seria melhor não tocar se se pudesse efectuar a
sua remoção total, com medo de excitar a sua actividade. Poucas
frases do Evangelho estão desta forma disseminadas. Podemos mesmo
encontrar esta, num conto de Villiers de l’Isle-Adam, Maryelle,
no qual a heroína é uma mulher galante e que começa assim: «O
seu desaparecimento de Mabille, o seu novo visual, a discreta
elegância das suas roupas escuras, os seus ares, enfim, de noli
me tangere…» (Quanto à música, ver a nota 78)
4
Impatiens noli tangere, uma variedade da família das
impacientes (balsâmicas), plantas que reagem ao contacto. A
Impatiens noli tangere perde as suas sementes mal é tocada.
5
Toda esta problemática do tocar está evidentemente em dívida
quanto ao trabalho de Jacques Derrida no Le Toucher, Jean-Luc
Nancy (Galilée, 2001); nesse livro, a propósito, o episódio
do Noli me tangere é mencionado ao longo de uma evocação
do papel do tocar em geral na lenda crística, evocação ela mesma
inscrita numa relação com a questão que outrora nomeei
«desconstrução do cristianismo», questão à qual Derrida
entende tocar com uma distância céptica ou rabínica que eu não
desespero de reduzir um pouco.
6
Cf. Totem e Tabu, II, 2
7
Em itálico no original (N.T.).
8
Em itálico no original (N.T.).
9
Sófocles, Édipo em Colona, v.1544 (Sófocles emprega o
verbo psauô, mais raro e menos usado em prosa que haptô
do qual falamos; o significado do segundo situa-se mais no registo
do «anexar», enquanto o primeiro no registo de «friccionar».
10
Em itálico no original (N.T.).
11
Em itálico no original (N.T.).
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