Prólogo
Sem dúvida não há
um único episódio da história ou lenda de Jesus de Nazaré que não
tenha sido representado na iconografia cristã ou pós-cristã,
oriental e ocidental. Ambas eram, no tempo dessas imagens, uma
sociedade e uma cultura inteiras que se reconheciam como
«cristianismo». Do anúncio da sua concepção até à sua partida
deste mundo, os pintores, os escultores e numa menor medida os
músicos tomaram por motivo cada um dos momentos da narrativa
exemplar.
Essa narrativa, além
disso, apresenta-se como uma sucessão de cenas e quadros: o fio
propriamente narrativo é demasiado fino e os episódios são menos
momentos de uma progressão do que paragens frente a representações
exemplares ou lições espirituais, umas o mais das vezes misturadas
às outras como é o caso na forma da parábola, ela mesma
expressamente designada nos textos evangélicos enquanto modo próprio
do ensinamento de Jesus, ao menos na sua pregação pública.1
Mas não é impossível dizer que a narração evangélica por
inteiro se apresenta como parábola: se esta última constitui um
modo de figurar através de uma narrativa encarregada de representar
um conteúdo moral, a vida de Jesus é por inteiro uma representação
da verdade que ele próprio diz ser. Mas isso significa que essa vida
não ilustra apenas uma verdade invisível: ela é identicamente a
verdade que se apresenta representando-se.2
Tal é pelo menos a proposição da fé cristã: não se acredita
somente em verdades significadas, traduzidas ou exprimidas por um
profeta, crê-se também ou crê-se primeiro, e talvez por definitivo
exclusivamente, na apresentação efectiva da verdade enquanto vida
ou existência singular.
Nessa medida, a
verdade faz-se por si só parabólica: o logos
não é distinto da figura ou da imagem, pois o seu conteúdo
essencial é precisamente aquilo em que o logos
se figura, se apresenta e se representa, se anuncia como uma pessoa
que ocorre, que se mostra e mostrando-se mostra o original da figura.
«Quem me viu, viu o Pai. Como dizes: Mostrai-nos o Pai»:3
não há nada nem ninguém a mostrar, nada nem ninguém a desvelar ou
a revelar. O pensamento da revelação como descoberta de uma
realidade escondida ou bem como decifração de um mistério não é
mais do que a modalidade religiosa ou crente (no sentido de uma forma
de representação ou de saber subjectivo) do cristianismo ou do
monoteísmo em geral. Mas na sua estrutura profunda, não religiosa
(ou como a auto-desconstrução, que se põe em jogo, da religião)4
e não crente, a «revelação» constitui a identidade do revelável
e do revelado, do «divino» e do «humano» ou melhor do «mundano».
Ela carrega igualmente consigo, desse modo, a identidade da imagem e
do original, até porque envolve, de maneira perfeitamente
consequente, a identidade do invisível e do visível.
Segue-se que a
narrativa evangélica considerada como uma parábola de parábolas se
propõe simultaneamente como um texto a interpretar e como uma
história verdadeira, a verdade e a interpretação fazendo-se
idênticas uma à outra e uma pela outra. Não ainda dessa maneira em
que a verdade aparece em última instância da interpretação, nem
dessa outra maneira segundo a qual a verdade seria igualmente
infinita e múltipla como são as interpretações sempre
recomeçadas. A identidade da verdade e das suas figuras deve ser
entendida de outro modo, num sentido que manifesta precisamente o
pensamento da parábola. Quando Jesus é requisitado pelos seus
discípulos a explicar o seu uso das parábolas, ele declara-lhes que
elas são destinadas àqueles a quem não foi «dado a conhecer os
mistérios do reino dos Céus»5
(aqueles a quem esse conhecimento foi dado são os discípulos).
Àqueles que «olham sem olhar e entendem sem entender nem
compreender»,6
poder-se-ia esperar que a parábola lhes abrisse os olhos, instruindo
por um sentido próprio pela sua fórmula figurada. Ora Jesus não
diz tal coisa. Ele declara ao contrário que as parábolas realizam
aos seus auditores as palavras de Isaías: «Vós entendeis o que
entendeis, mas não compreendem; vós olham o que olham, mas não
vêem.»7
E é exactamente nesse contexto que ele pronuncia uma das suas
sentenças mais conhecidas e mais paradoxais: «ao que tem,
dar-se-lhe-á, e terá em abundância; mas ao que não tem, até
aquilo que tem lhe será tirado.»8
O fim da parábola é pois primeiramente manter na cegueira quem não
vê. Ela não provém de uma pedagogia da figuração (da alegoria,
da ilustração), mas bem ao contrário de uma recusa ou de uma
negação da pedagogia.
Deve-se sublinhar
outra também que «aqueles que olham sem olhar» são muito
exactamente os termos que, noutros textos do Antigo e do Novo
Testamento, designam igualmente os ídolos e os seus adoradores.9
O culto dos «ídolos» não é condenado enquanto relação às
imagens, mas enquanto esses deuses e os olhos que lhes rendem culto
não acolheram primeiramente neles a vista anterior a todo o visível
pela qual somente pode haver divindade e adoração. Razão pela qual
ele já deve ter recebido: ele deve ter, precisamente, a disposição
receptiva. E esta última não pode senão ter sido desde logo
recebida: não é um mistério religioso, é a condição mesma da
receptividade, da sensibilidade e do sentido em geral. As palavras
«divino» ou «sagrado» podem muito bem nunca ter designado outra
coisa que não essa passividade ou essa paixão iniciadora de toda a
espécie de sentido (sens),
sensatez (sensé),
sensível (sensitif)
ou sensual.
A parábola não vai
da imagem ao sentido: ela vai da imagem a uma vista já dada ou não.
«Bem-aventurados os vossos olhos, porque vêem!» diz Jesus aos
discípulos,10
ou bem esta outra fórmula tantas vezes repetida: “Quem tem
ouvidos, ouça!»11
A parábola fala apenas àquele que já a entendeu, ela mostra
àqueles que já viram. Aos outros, ela esconde, ao contrário, o que
há a ver e o facto do que há a ver. A interpretação mais estreita
e a mais tristemente religiosa desse pensamento seria essa segundo a
qual a verdade seria reservada aos eleitos, os quais seriam, ademais,
segundo o texto, sempre o pequeno número. A interpretação
religiosa média equivale a dizer que a parábola oferece uma visão
atenuada e provisória, incitando a procurar mais longe: mas é muito
manifestamente aquilo que o texto interdita a pensar (mesmo se essa
interpretação seja frequente). Mas o texto obriga, pelo contrário,
a pensar que a parábola e a presença ou ausência da vista
«espiritual» são directamente e imediatamente correlativas. Não
há mais graus de figuração ou de literalidade do
sentido/significado; há uma só «imagem» e face a ela uma visão
ou uma cegueira. Sem dúvida, mais de uma vez tem Jesus de traduzir
para os seus discípulos uma das suas parábolas. Fazendo-o, pois,
não faz mais do que restituir a vista que já tinham. Uma vez mais,
a parábola restitui a vista ou a cegueira. Ela torna a dar o dom ou
a privação da vista em verdade (la
vue en vérité).12
A parábola não se
encontra na relação da «figura» com o «próprio», nem na
relação da «aparência» com a «realidade», ou na relação
mimética; ela está na relação da imagem com a vista. A imagem é
vista se ela for vista, e ela é vista mal a visão se fizer nela e
por ela, tal como a visão só vê quando é dada com a imagem e
nela. Entre imagem e vista, não é imitação, é participação e
penetração. É participação da vista no visível e do visível,
pelo seu lado, com o invisível que não é outra senão a própria
vista. (A methexis
na mimesis,
é sem dúvida um dos enunciados do quiasma greco-judeu onde se
compõe a invenção cristã).
Desse facto, a
parábola está longe de se deixar atrofiar na fórmula de uma
alegoria. Ela própria participa do dom da vista e desse «mais»
assegurado a esses que já a têm. Na parábola, há mais de uma
«figura», mas há igualmente – como em sentido inverso – mais
do que um sentido primeiro ou final. Há um aumento de visibilidade,
ou mais precisamente, um duplo aumento de visibilidade e de
invisibilidade.
É dessa forma que
as parábolas perpetuaram a sua eficácia muito para lá da religião.
Nos nomes ou nas expressões do «joio», do «bom Samaritano», do
«filho pródigo» ou dos «obreiros da décima primeira hora»,
cintila um brilho singular, ressoa um suplemento de significância
absolutamente irredutível, não só à religião cristã, mas
igualmente à moral secularizada que um europeu cultivado sabe ainda
associar a estas figuras. Certamente, enquanto depósitos culturais,
eles não são muito diferentes das figuras mitológicas tais como
«Hércules no cruzamento dos caminhos» ou bem «as Ninfas dos
bosques e das fontes». Mas uma diferença salta à vista: aí onde
Hércules e as Ninfas, saídos de um contexto mítico e ritual, são
imediatamente alegorias que se apresentam como tal, as parábolas
permanecem obstinadamente, de qualquer modo, «tautegóricas»,
quer-se dizer, anunciando-se a si mesmas e não outra coisa, segundo
o termo forjado por Schelling para caracterizar, precisamente, o mito
na sua própria força. Aplicam-se, a este respeito, como fábulas:
n’ «a formiga e a cigarra», há mais do que a oposição da
imprudência e da previdência necessária. Existem figuras,
silhuetas, nomes e sonoridades que relançam sem fim os recursos de
sentido que os conceitos não podem deixar de arrojar (jaillir).
No fim, a verdade da fábula está continuamente em excesso em
relação ao sentido de que a «moralidade» fornece. Para lá do
sentido: invisível no belo meio da figuralidade visível. Ora, as
fábulas – de Phèdre a La Fontaine – não são mais do que
verdades tipicamente desencantadas. A fábula é o inverso do mito, a
lição sem grandiosidade sagrada (aí onde o mito era a
grandiosidade imortal sem outra lição para além do derribamento
(terrasement)
trágico dos mortais).
Mas a parábola
cristã desova uma outra via, com a qual é bem possível que toda a
literatura moderna tenha uma relação essencial (ou talvez
igualmente toda a arte moderna: num sentido, este pequeno livro
presta-se a aclarar um pouco essa hipótese). O excesso da sua
verdade não tem o carácter indeterminado de uma lição geral de
qualquer modo sobredimensionada por qualquer caso particular, e
propondo um princípio regulador. Mas o seu excesso é sempre
primeiro o da sua proveniência ou o do seu endereçamento (adresse):
«Escute quem tem orelhas!» Não há «mensagem» sem que haja
primeiro – ou, mais subtilmente, sem que haja também na própria
mensagem – um endereçar a uma capacidade ou a uma disposição de
escutar. Não é uma exortação (do género «tenham atenção!
abram os ouvidos!»), é um aviso: se vós não compreenderdes, não
procureis a razão nalguma obscuridade do texto, mas somente em vós,
na obscuridade de vosso coração. Mais que o conteúdo pormenorizado
da mensagem, prevalece isto: há aí uma mensagem para quem a quer e
a sabe receber, para quem quer e sabe ser interpelado. A mensagem
nada diz a orelhas moucas, mas à orelha aberta diz mais que uma
lição. Mais ou menos do que o sentido/significado: nenhuma ou toda
a verdade, de um golpe presente e cada vez singular.
Assim o texto – ou
a palavra (parole)
– exige antes de tudo, antes do seu próprio sentido/significado
(ou infinitamente para lá dele) o seu auditor, aquele que desde logo
já entrou na própria escuta desse texto, no seu mais íntimo
movimento de sentido ou de ultrapassagem do sentido e na sua
désoeuvrement.
Essa exigência significa igualmente que a parábola espera a orelha
que a sabe entender, e que é ela própria, a parábola, que pode
sozinha abrir a orelha para a sua capacidade de escutar. Da mesma
forma, ter-se-á dito bem mais tarde, um autor deve procurar os seus
leitores, ou melhor, e é a mesma coisa, é o autor que cria os seus
próprios leitores. Trata-se sempre do aparecimento do sentido ou do
contra-senso (outre-sens):
de um eco singular no seio do qual eu me ouço falar e responder com
a voz do outro à orelha do outro como à minha própria orelha.
Não será isso o
que separa, sem conciliação possível, a fé da crença? Pois a
crença põe ou supõe no outro uma mesmidade (mêmeté)
na qual se identifica e se reconforta (ele é bom, ele salva-me),
enquanto a fé se permite dirigir por um outro apelo desconcertante,
lançada numa escuta que eu próprio desconheço. Mas o que separa
assim a crença da fé é identicamente o que separa a religião da
literatura e da arte, sob a condição de ouvir os termos em toda a
sua verdade. Trata-se de ouvir, com efeito: ouvir a nossa própria
orelha escutar, ver o nosso olho olhar isso mesmo que os abre e que
se eclipsa nessa abertura.
1
Mt 12, 34-35; Mc 4, 33-34.
2
A parábola distingue-se assim claramente da alegoria. Nesse ponto
de vista, partilho a convicção de Jean-Pierre Sarrazac, ele
próprio retomando a tese exegética de Charles Harold Dodd, em La
parabole ou l’enfance du théâtre, Belfort, Circé. 2000. Cf.
p. 50 a 65.
3
João 14,9 (em regra geral, sigo a tradução de Jean Grosjean, La
Bible. Noveau Testament, Paris, Gallimard, Bibliothèque de la
Pléiade, 1971). Quero com efeito restar retirado das discussões em
volta das tentativas para renovar a tradução desses textos: os
artistas cujas obras acompanham e aconselham de qualquer modo este
ensaio não tinham conhecimento de tais discussões.
4
Por «desconstrução do cristianismo» procuro designar um
movimento que será à vez de análise do cristianismo – a partir
de uma posição supostamente capaz de o ultrapassar – e de
próprio deslocamento, com transformação, do próprio cristianismo
se ultrapassando, acumulando tudo enquanto dando acesso a recursos
que esconde e encerra à vez. Para o essencial, trata-se disto: não
só o cristianismo se separa e se exceptua do religioso, mas designa
ocamente, para lá dele, o lugar daquilo que deverá acabar por
escapar à alternativa primária do teísmo e do ateísmo. Na
realidade, esta desconstrução trabalha, sobre modos diferentes, o
conjunto do monoteísmo das «religiões do Livro». Esse trabalho
responde sempre a isto: o deus «Um» não é precisamente mais «um
deus». Voltarei aqui mais tarde de modo temático. O pequeno ensaio
que se vai ler encontra-se na obediência deste tema, mas
alimenta-se de modo lateral.
5
Mt 13,11.
6
Ibid., 13.
7
Ibid., 14.
8
Ibid., 12.
9
Sobre esta questão, permito-me o reenvio do meu estudo «A
representação interdita» em Au fond des images, Paris,
Galilée, 2003.
10
Ibid., 16.
11
Ibid., 9.
12
Como pensar a contingência desse dom ou dessa privação? É
necessário abrir aqui a questão da eleição ou da graça, a qual
excede o nosso propósito. Digamos, simplesmente, no nosso contexto
imediato, que os discípulos – sempre designados ou escolhidos sem
razão probatória, mesmo a contra-motivo – não são escolhidos
porque já têm a «vista», mas pelo contrário recebem-na porque
são escolhidos.
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