sábado, 27 de maio de 2017

Jean-Luc Nancy - Noli me tangere

Prólogo


Sem dúvida não há um único episódio da história ou lenda de Jesus de Nazaré que não tenha sido representado na iconografia cristã ou pós-cristã, oriental e ocidental. Ambas eram, no tempo dessas imagens, uma sociedade e uma cultura inteiras que se reconheciam como «cristianismo». Do anúncio da sua concepção até à sua partida deste mundo, os pintores, os escultores e numa menor medida os músicos tomaram por motivo cada um dos momentos da narrativa exemplar.
Essa narrativa, além disso, apresenta-se como uma sucessão de cenas e quadros: o fio propriamente narrativo é demasiado fino e os episódios são menos momentos de uma progressão do que paragens frente a representações exemplares ou lições espirituais, umas o mais das vezes misturadas às outras como é o caso na forma da parábola, ela mesma expressamente designada nos textos evangélicos enquanto modo próprio do ensinamento de Jesus, ao menos na sua pregação pública.1 Mas não é impossível dizer que a narração evangélica por inteiro se apresenta como parábola: se esta última constitui um modo de figurar através de uma narrativa encarregada de representar um conteúdo moral, a vida de Jesus é por inteiro uma representação da verdade que ele próprio diz ser. Mas isso significa que essa vida não ilustra apenas uma verdade invisível: ela é identicamente a verdade que se apresenta representando-se.2 Tal é pelo menos a proposição da fé cristã: não se acredita somente em verdades significadas, traduzidas ou exprimidas por um profeta, crê-se também ou crê-se primeiro, e talvez por definitivo exclusivamente, na apresentação efectiva da verdade enquanto vida ou existência singular.
Nessa medida, a verdade faz-se por si só parabólica: o logos não é distinto da figura ou da imagem, pois o seu conteúdo essencial é precisamente aquilo em que o logos se figura, se apresenta e se representa, se anuncia como uma pessoa que ocorre, que se mostra e mostrando-se mostra o original da figura. «Quem me viu, viu o Pai. Como dizes: Mostrai-nos o Pai»:3 não há nada nem ninguém a mostrar, nada nem ninguém a desvelar ou a revelar. O pensamento da revelação como descoberta de uma realidade escondida ou bem como decifração de um mistério não é mais do que a modalidade religiosa ou crente (no sentido de uma forma de representação ou de saber subjectivo) do cristianismo ou do monoteísmo em geral. Mas na sua estrutura profunda, não religiosa (ou como a auto-desconstrução, que se põe em jogo, da religião)4 e não crente, a «revelação» constitui a identidade do revelável e do revelado, do «divino» e do «humano» ou melhor do «mundano». Ela carrega igualmente consigo, desse modo, a identidade da imagem e do original, até porque envolve, de maneira perfeitamente consequente, a identidade do invisível e do visível.
Segue-se que a narrativa evangélica considerada como uma parábola de parábolas se propõe simultaneamente como um texto a interpretar e como uma história verdadeira, a verdade e a interpretação fazendo-se idênticas uma à outra e uma pela outra. Não ainda dessa maneira em que a verdade aparece em última instância da interpretação, nem dessa outra maneira segundo a qual a verdade seria igualmente infinita e múltipla como são as interpretações sempre recomeçadas. A identidade da verdade e das suas figuras deve ser entendida de outro modo, num sentido que manifesta precisamente o pensamento da parábola. Quando Jesus é requisitado pelos seus discípulos a explicar o seu uso das parábolas, ele declara-lhes que elas são destinadas àqueles a quem não foi «dado a conhecer os mistérios do reino dos Céus»5 (aqueles a quem esse conhecimento foi dado são os discípulos). Àqueles que «olham sem olhar e entendem sem entender nem compreender»,6 poder-se-ia esperar que a parábola lhes abrisse os olhos, instruindo por um sentido próprio pela sua fórmula figurada. Ora Jesus não diz tal coisa. Ele declara ao contrário que as parábolas realizam aos seus auditores as palavras de Isaías: «Vós entendeis o que entendeis, mas não compreendem; vós olham o que olham, mas não vêem.»7 E é exactamente nesse contexto que ele pronuncia uma das suas sentenças mais conhecidas e mais paradoxais: «ao que tem, dar-se-lhe-á, e terá em abundância; mas ao que não tem, até aquilo que tem lhe será tirado.»8 O fim da parábola é pois primeiramente manter na cegueira quem não vê. Ela não provém de uma pedagogia da figuração (da alegoria, da ilustração), mas bem ao contrário de uma recusa ou de uma negação da pedagogia.
Deve-se sublinhar outra também que «aqueles que olham sem olhar» são muito exactamente os termos que, noutros textos do Antigo e do Novo Testamento, designam igualmente os ídolos e os seus adoradores.9 O culto dos «ídolos» não é condenado enquanto relação às imagens, mas enquanto esses deuses e os olhos que lhes rendem culto não acolheram primeiramente neles a vista anterior a todo o visível pela qual somente pode haver divindade e adoração. Razão pela qual ele já deve ter recebido: ele deve ter, precisamente, a disposição receptiva. E esta última não pode senão ter sido desde logo recebida: não é um mistério religioso, é a condição mesma da receptividade, da sensibilidade e do sentido em geral. As palavras «divino» ou «sagrado» podem muito bem nunca ter designado outra coisa que não essa passividade ou essa paixão iniciadora de toda a espécie de sentido (sens), sensatez (sensé), sensível (sensitif) ou sensual.

A parábola não vai da imagem ao sentido: ela vai da imagem a uma vista já dada ou não. «Bem-aventurados os vossos olhos, porque vêem!» diz Jesus aos discípulos,10 ou bem esta outra fórmula tantas vezes repetida: “Quem tem ouvidos, ouça!»11 A parábola fala apenas àquele que já a entendeu, ela mostra àqueles que já viram. Aos outros, ela esconde, ao contrário, o que há a ver e o facto do que há a ver. A interpretação mais estreita e a mais tristemente religiosa desse pensamento seria essa segundo a qual a verdade seria reservada aos eleitos, os quais seriam, ademais, segundo o texto, sempre o pequeno número. A interpretação religiosa média equivale a dizer que a parábola oferece uma visão atenuada e provisória, incitando a procurar mais longe: mas é muito manifestamente aquilo que o texto interdita a pensar (mesmo se essa interpretação seja frequente). Mas o texto obriga, pelo contrário, a pensar que a parábola e a presença ou ausência da vista «espiritual» são directamente e imediatamente correlativas. Não há mais graus de figuração ou de literalidade do sentido/significado; há uma só «imagem» e face a ela uma visão ou uma cegueira. Sem dúvida, mais de uma vez tem Jesus de traduzir para os seus discípulos uma das suas parábolas. Fazendo-o, pois, não faz mais do que restituir a vista que já tinham. Uma vez mais, a parábola restitui a vista ou a cegueira. Ela torna a dar o dom ou a privação da vista em verdade (la vue en vérité).12

A parábola não se encontra na relação da «figura» com o «próprio», nem na relação da «aparência» com a «realidade», ou na relação mimética; ela está na relação da imagem com a vista. A imagem é vista se ela for vista, e ela é vista mal a visão se fizer nela e por ela, tal como a visão só vê quando é dada com a imagem e nela. Entre imagem e vista, não é imitação, é participação e penetração. É participação da vista no visível e do visível, pelo seu lado, com o invisível que não é outra senão a própria vista. (A methexis na mimesis, é sem dúvida um dos enunciados do quiasma greco-judeu onde se compõe a invenção cristã).
Desse facto, a parábola está longe de se deixar atrofiar na fórmula de uma alegoria. Ela própria participa do dom da vista e desse «mais» assegurado a esses que já a têm. Na parábola, há mais de uma «figura», mas há igualmente – como em sentido inverso – mais do que um sentido primeiro ou final. Há um aumento de visibilidade, ou mais precisamente, um duplo aumento de visibilidade e de invisibilidade.
É dessa forma que as parábolas perpetuaram a sua eficácia muito para lá da religião. Nos nomes ou nas expressões do «joio», do «bom Samaritano», do «filho pródigo» ou dos «obreiros da décima primeira hora», cintila um brilho singular, ressoa um suplemento de significância absolutamente irredutível, não só à religião cristã, mas igualmente à moral secularizada que um europeu cultivado sabe ainda associar a estas figuras. Certamente, enquanto depósitos culturais, eles não são muito diferentes das figuras mitológicas tais como «Hércules no cruzamento dos caminhos» ou bem «as Ninfas dos bosques e das fontes». Mas uma diferença salta à vista: aí onde Hércules e as Ninfas, saídos de um contexto mítico e ritual, são imediatamente alegorias que se apresentam como tal, as parábolas permanecem obstinadamente, de qualquer modo, «tautegóricas», quer-se dizer, anunciando-se a si mesmas e não outra coisa, segundo o termo forjado por Schelling para caracterizar, precisamente, o mito na sua própria força. Aplicam-se, a este respeito, como fábulas: n’ «a formiga e a cigarra», há mais do que a oposição da imprudência e da previdência necessária. Existem figuras, silhuetas, nomes e sonoridades que relançam sem fim os recursos de sentido que os conceitos não podem deixar de arrojar (jaillir). No fim, a verdade da fábula está continuamente em excesso em relação ao sentido de que a «moralidade» fornece. Para lá do sentido: invisível no belo meio da figuralidade visível. Ora, as fábulas – de Phèdre a La Fontaine – não são mais do que verdades tipicamente desencantadas. A fábula é o inverso do mito, a lição sem grandiosidade sagrada (aí onde o mito era a grandiosidade imortal sem outra lição para além do derribamento (terrasement) trágico dos mortais).
Mas a parábola cristã desova uma outra via, com a qual é bem possível que toda a literatura moderna tenha uma relação essencial (ou talvez igualmente toda a arte moderna: num sentido, este pequeno livro presta-se a aclarar um pouco essa hipótese). O excesso da sua verdade não tem o carácter indeterminado de uma lição geral de qualquer modo sobredimensionada por qualquer caso particular, e propondo um princípio regulador. Mas o seu excesso é sempre primeiro o da sua proveniência ou o do seu endereçamento (adresse): «Escute quem tem orelhas!» Não há «mensagem» sem que haja primeiro – ou, mais subtilmente, sem que haja também na própria mensagem – um endereçar a uma capacidade ou a uma disposição de escutar. Não é uma exortação (do género «tenham atenção! abram os ouvidos!»), é um aviso: se vós não compreenderdes, não procureis a razão nalguma obscuridade do texto, mas somente em vós, na obscuridade de vosso coração. Mais que o conteúdo pormenorizado da mensagem, prevalece isto: há aí uma mensagem para quem a quer e a sabe receber, para quem quer e sabe ser interpelado. A mensagem nada diz a orelhas moucas, mas à orelha aberta diz mais que uma lição. Mais ou menos do que o sentido/significado: nenhuma ou toda a verdade, de um golpe presente e cada vez singular.
Assim o texto – ou a palavra (parole) – exige antes de tudo, antes do seu próprio sentido/significado (ou infinitamente para lá dele) o seu auditor, aquele que desde logo já entrou na própria escuta desse texto, no seu mais íntimo movimento de sentido ou de ultrapassagem do sentido e na sua désoeuvrement. Essa exigência significa igualmente que a parábola espera a orelha que a sabe entender, e que é ela própria, a parábola, que pode sozinha abrir a orelha para a sua capacidade de escutar. Da mesma forma, ter-se-á dito bem mais tarde, um autor deve procurar os seus leitores, ou melhor, e é a mesma coisa, é o autor que cria os seus próprios leitores. Trata-se sempre do aparecimento do sentido ou do contra-senso (outre-sens): de um eco singular no seio do qual eu me ouço falar e responder com a voz do outro à orelha do outro como à minha própria orelha.
Não será isso o que separa, sem conciliação possível, a fé da crença? Pois a crença põe ou supõe no outro uma mesmidade (mêmeté) na qual se identifica e se reconforta (ele é bom, ele salva-me), enquanto a fé se permite dirigir por um outro apelo desconcertante, lançada numa escuta que eu próprio desconheço. Mas o que separa assim a crença da fé é identicamente o que separa a religião da literatura e da arte, sob a condição de ouvir os termos em toda a sua verdade. Trata-se de ouvir, com efeito: ouvir a nossa própria orelha escutar, ver o nosso olho olhar isso mesmo que os abre e que se eclipsa nessa abertura.

1 Mt 12, 34-35; Mc 4, 33-34.
2 A parábola distingue-se assim claramente da alegoria. Nesse ponto de vista, partilho a convicção de Jean-Pierre Sarrazac, ele próprio retomando a tese exegética de Charles Harold Dodd, em La parabole ou l’enfance du théâtre, Belfort, Circé. 2000. Cf. p. 50 a 65.
3 João 14,9 (em regra geral, sigo a tradução de Jean Grosjean, La Bible. Noveau Testament, Paris, Gallimard, Bibliothèque de la Pléiade, 1971). Quero com efeito restar retirado das discussões em volta das tentativas para renovar a tradução desses textos: os artistas cujas obras acompanham e aconselham de qualquer modo este ensaio não tinham conhecimento de tais discussões.
4 Por «desconstrução do cristianismo» procuro designar um movimento que será à vez de análise do cristianismo – a partir de uma posição supostamente capaz de o ultrapassar – e de próprio deslocamento, com transformação, do próprio cristianismo se ultrapassando, acumulando tudo enquanto dando acesso a recursos que esconde e encerra à vez. Para o essencial, trata-se disto: não só o cristianismo se separa e se exceptua do religioso, mas designa ocamente, para lá dele, o lugar daquilo que deverá acabar por escapar à alternativa primária do teísmo e do ateísmo. Na realidade, esta desconstrução trabalha, sobre modos diferentes, o conjunto do monoteísmo das «religiões do Livro». Esse trabalho responde sempre a isto: o deus «Um» não é precisamente mais «um deus». Voltarei aqui mais tarde de modo temático. O pequeno ensaio que se vai ler encontra-se na obediência deste tema, mas alimenta-se de modo lateral.
5 Mt 13,11.
6 Ibid., 13.
7 Ibid., 14.
8 Ibid., 12.
9 Sobre esta questão, permito-me o reenvio do meu estudo «A representação interdita» em Au fond des images, Paris, Galilée, 2003.
10 Ibid., 16.
11 Ibid., 9.
12 Como pensar a contingência desse dom ou dessa privação? É necessário abrir aqui a questão da eleição ou da graça, a qual excede o nosso propósito. Digamos, simplesmente, no nosso contexto imediato, que os discípulos – sempre designados ou escolhidos sem razão probatória, mesmo a contra-motivo – não são escolhidos porque já têm a «vista», mas pelo contrário recebem-na porque são escolhidos.

Sem comentários: