domingo, 10 de maio de 2015

a decisão (xv)

          «Escuta, eu sei que não te ajudo em nada. Telefonaste-me porque estás envolvido num sarilho, ou metido numa grande confusão, não sei. Para te dizer a verdade, eu nem sequer prestei muita atenção ao que disseste, nem sei bem qual é o teu problema, se é um caso de vida ou de morte. Quero dizer, eu escutei-te, percebi o teu problema, mas quando me perguntaste o que eu faria se eu fosse tu desencadeaste uma reacção que nem mesmo eu estava à espera. É como se tivesse cá dentro um tumulto de coisas por dizer e tudo saiu em catadupa. Isto foi um tremor de terra mais interior que no manto da terra, uma bomba com uma onda de devastação violentíssima, uma acção em cadeia, um imenso dominó ou castelo de cartas amparado no seu equilíbrio frágil e rapidamente desmoronado pela tua inquirição. A tua pergunta entrou em mim como dois dedos jogando um berlinde contra o muro de dominó, ou juntos em forma de pinça pescando a carta que derrui a construção. Por tudo o que ouviste, se alguma coisa foi dita que te magoou ou te ofendeu, por tudo isso te peço desculpas, peço o teu perdão. Sabes bem que, como teu amigo, apenas quero o teu bem e conhecendo-me como creio ou julgo tu me conheceres, também sabes que, para mim, não faz qualquer sentido ferir-te, magoar-te, ofender-te, porque te considero meu amigo, meu semelhante, porque te respeito e nada ganharia com o contrário, isso seria malvadez.»
          «Sim, sim, eu sei que não o farias e concordo contigo. Eu só queria o teu conselho porque prezo a tua sinceridade e o pragmatismo com que lidas e, para usar um conceito a que recorreste no teu discurso, conduzes a tua vida.»
          «E eu agradeço-te o elogio e o facto de me teres escolhido para teu conselheiro, mas hoje, para este caso, não creio ter sido de grande ajuda. Não fui, de todo, um conselheiro. Penso mesmo que compliquei um pouco mais porque te desviei do caminho que devias ter seguido. Devias ter seguido o teu fio, ou o fio desse problema, desenrolá-lo e ver onde te levava. O que é que eu fiz? Como uma mãe que deseja tecer uma nova camisola para o seu filho peguei na meada, sentei-te à minha frente, ergui-te os braços como se de uma súplica se tratasse – e não deixou de o ser porque me pedias conselho, solicitavas o apelo –, coloquei em cada mão uma parte da meada perfazendo assim uma espécie de elipse, pedi-te, pela minha parte, que te mantivesses quieto e em tensão na tua súplica e assim sustendo a meada no ar e mantendo a sua elipse, este discurso que proferi; pedi-te igualmente que acompanhasses o meu movimento circulatório enquanto a meada se desenrolava e eu, partindo de uma ponta desse fio, produzia um novelo de frases, pensamentos. O teu próprio novelo, esse, foi deixado de lado, de parte, ou, prosseguindo na mesma metáfora, foste tu que me trouxeste a meada para que eu te fizesse o novelo, desenrodilhando a lã, soltando os nós que se criam. Porém, o nó precioso, o mais desejado, esse que mais do que tudo necessitavas denodado, esse, foi escondido, envolvido por voltas e mais voltas do novelo, em torno dele outros nós se deram quando o fio nas suas voltas se abismava em si, se redemoinhava. Eu sei, eu dei o nó à ponta do fio que me estendeste, esse fio já ele enodado e que necessitavas estendido, denodado. E agora, perguntas tu. Agora, pegas numa das pontas, a que se te apresenta à mão ou à vista, dás um nó prendendo o fio a qualquer coisa de modo a que possas estender o novelo e percorrê-lo e possas sempre retornar ao princípio se desejares – como vês, não consegues evitar o nó, o do princípio ou o do fim, se queres percorrer o fio com que o mundo se cose e para denodar um nó dás outro um pouco mais adiante ou mais atrás – e assim dares conta do percurso, tomares atenção a cada nó do fio estendido ou o conjunto de que esse fio é feito, é composto. Como seria bom, não é?, que se pudesse fazer precisamente isso com o fio da nossa vida. Dizer a uma das parcas: “escuta, dá-me o meu fio, permite-me que o isole de todos os entrançados, das redes ou das teias em que está enredado, deixa-me perfilá-lo, passar os dedos como se passa numa mobília velha e empoada, ou no dorso de um gato ou cão estimado, deixa-me sentir a fibra de que ela é composta, essa matéria estranha, dúctil, que me cose e me cose ao mundo e aos outros. Que grande manta de trapos tudo isto é!»

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