sábado, 9 de maio de 2015

a decisão (xiv)

          «O mais certo, por vezes, é que a tua resposta a um problema, a resolução de um problema é colocar um novo; ele parece resolvido e, de certo modo, até está, mas a sua resolução traz, transporta atrelado a si um novo problema. Um problema que de imediato confrontas é, justamente, a questão moral escondida, oculta em cada decisão. Melhor, em cada decisão há um confronto entre ti, enquanto sujeito moral e ti, enquanto sujeito ético; tu, enquanto sujeito que delineia um conjunto de regras, um código de condução e tu, enquanto sujeito que, a cada vez, através da sua conduta põe em xeque a validade, a certeza indubitável do código de condução, medindo-o, estirando-o, dilatando os seus limites, encontrando falhas, propondo adendas, como se fazem aos códigos civis, constitucionais, etc. Repara, eu nem sequer estou a falar de um código universal, ou legal de um país, falo do teu código pessoal, um que, quer queiras quer não, te constitui, é de certo modo constitucional e não o criaste ex nihilo, ele é uma mescla de diferentes códigos, familiares, fraternos, educacionais, culturais, etc., etc., etc. Por isso o exercício de conduta, porque é o frente a frente, a vanguarda no campo de batalha entre morais e éticas, se reverte e combates em duas frentes: a do problema em si e a da fricção que emerge entre condução e conduta; mas também é por isso que a decisão, de certo modo, já está tomada, porque se ela é uma resposta segundo critérios de condução e sabendo que esses critérios não são teus, na verdade fá-los teus mas não são teus; e só os fazes teus pelo exercício, o qual inevitavelmente introduz adendas, apaga critérios, sublinha outros. A resposta, a decisão está já tomada dentro dos parâmetros do código de condução que sempre vem de um outro que não és tu. Essa resposta está já dada porque não é tua, é a soma ou a suma de critérios e adendas que vêm de outros, outros corpos, outras vozes. A tua mente, a tua cabeça, o teu pensamento, o teu raciocínio, o que julgas ser tu e teu, imperativamente, impreterivelmente, meu caro, não é, não és. Tu és um excerto, um fato de Arlequim, és um tronco ao qual se vão enxertando mais e mais discursos, ideias, julgamentos, pensamentos. Nada de ti é teu e, no entanto, só tu és tu, só em ti está essa conjugação de textos e ideias e julgamentos e pensamentos assim constituída. Só tu poderias dar a resposta que darias ou darás nesse preciso momento, porque entre todas as igualdades e semelhanças a diferença retine o seu tinido, ou seja, só tu, nesse preciso momento, no momento em que o problema te mostra os seus dentes, te rosna ameaçando e forçando o teu retiro ao covil do pensamento, durante o processo de discernimento, de escavação até à audição cristalina do socorro da decisão, isto é, no preciso momento da tua resposta a diferença ressalta entre a semelhança, tu surges, por uns segundos, o teu instante original, quando tu afastas num gesto de desdenho da tua mão incorporal no teu cérebro, desviando toda a ganga do ouro do teu pensamento, tu surges elevando-te da lama – daí não ser tão estranho o facto de o homem, adão, nascer da lama; já reparaste que antes de qualquer acção determinante tu inspiras, tal como deus insuflou o pneuma em adão?
          «Mas já estou a divagar, uma vez mais, a perder o fio à meada. E talvez tu sabes isto, também tu o deves saber, nada do que há e é é puro, é tudo uma mistura. Este fio que perco à meada, da meada, é já ele constituído por um intrincado de fios entrelaçados, enodados, enrolados uns em torno dos outros. Puxando por um toda a maquinaria se põe em funcionamento até ao infinito. E, claro, após tantos copos e tão boa comida regada por quantos mais outros copos qualquer fio se torna o único, o singular fio de Ariana. Não, desculpa, deixa-me corrigir: não interessa o fio, um fio é o fio, todo e qualquer fio é o fio com que se cose o mundo e a vida. Não interessa onde o encontraste, de que camisola ou cós se descoseu, se desprendeu. Quando o puxas, como numa ardilosa armadilha, um gatilho é apertado e de um revólver sai uma bala apontada ao teu coração. Não sei, meu caro, não sei, talvez a decisão seja sempre este encontro do fio a descoser e o apertar do gatilho. E se te rodeiam revólveres fatais, este imaterial que te mudará o mundo e a vida, não o sendo menos, não te matará.

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