segunda-feira, 11 de maio de 2015

a decisão (fim)

          Era já tarde na noite. Eu percebia, pelo seu cada vez mais frequente desvario, que a lógica, de que ele era famosíssimo, se encontrava adormecida. Essa governanta fechava já os olhos fatigados pelos longos excursos a que foi submetida, estendia-se no divã à luz de uma lareira, sucumbindo às carícias de Baco e Morfeu. Dividimos a conta, cada um vestiu o seu casaco em silêncio, cada um ao seu ritmo e segundo o seu método, ele abotoando de cima para baixo e eu de baixo para cima. Já ninguém se encontrava no restaurante. As cadeiras sobre as mesas, as luzes como bandeiras a meia-haste davam um ar morno. Ao fundo os empregados comiam o seu jantar também em silêncio. Escutava-se somente o combate dos talheres na porcelana e os murmúrios salivados da gula e da fome. Esse silêncio, à medida de cada passo, assim parecia, ia conquistando um território cada vez mais extenso. A noite estava fria e estrelada. Todavia, enquanto se desenrolou o nosso jantar, a neve tinha atapetado os passeios e as ruas. Nenhum carro, nenhum transeunte, somente nós, o escuro, o vapor de água que das nossas bocas e narizes se evaporava, esse comum som da neve pisada como se ouvíssemos alguém a mastigar pão duro e a decisão que ainda tinha de tomar e que me oprimia o estômago. Despedimo-nos apertando uma vez mais e energicamente as nossas mãos e demos um forte abraço. Fiquei ali parado enquanto ele partia na sua direcção. O aperto no estômago adensava-se e ameaçava estrangular-me a garganta e o coração, na verdade sentia-o já a palpitar descompassadamente, os cavalos em atropelo e chispando as suas ferraduras. A minha casa não estava longe e como ainda nenhum carro pisara a neve até se vitrificar não corria grande perigo voltar de bicicleta, levaria um quarto de hora, vinte minutos conduzindo com cuidado. Tempo suficiente, se agora tinha de retornar, para chegar a uma conclusão, decidir-me sobre o que fazer, não mais adiar a resposta. Se percebi alguma coisa do que ele disse sei que já tenho a decisão comigo, não vou tentar relembrar todo o seu discurso, de qualquer modo de nada me valeu prestar atenção aos pormenores, Deus sempre permaneceu ausente. Cruzei as avenidas, tentei manter uma respiração ritmada de modo a desenlaçar esses três nós no corpo, mas de pouco valeu. Ao passar pela ponte de Waterloo tive de parar e vomitar. Só assim os nós anuviaram o seu aperto. Apanhei alguma neve do chão e lavei a minha boca. Saltei para a bicicleta e continuei a minha marcha procurando descobrir que decisão era essa que no fim de contas já a havia tomado. Cheguei à entrada do prédio, abri a porta e conduzi a bicicleta para o pátio. Ao estacioná-la olhei para o nosso andar. Uma luz mantinha-se acesa, a luz que adornava o nosso leito, o que só podia significar duas coisas: ou estava acordada, ou deixou a luz acesa e dorme já. A minha cobardia desejava a segunda hipótese porque ainda não sabia o que aconteceu, como perdi a noção da realidade. Subi a escadas revolvendo e revolvendo o dia, apertando a chave na minha mão e, à medida que os 66 degraus terminavam, ia sentindo que os nós se desvaneciam enquanto alguma coisa no meu bolso inferior do casaco batia 66 vezes na minha perna. Defronte à porta levei uma mão ao bolso e de lá tirei um pequeno cubo negro e aveludado. A porta e o cubo abriram-se ao mesmo tempo. Ela estava diante mim e chorava, uma mão tapando a boca e os olhos lacrimosos saltando do cubo, onde um anel resplandecia no escuro da escadaria, para os meus perfazendo o mesmo percurso que ela. Ele tinha razão, o meu amigo, eu tinha realmente tomado uma decisão.

(as dúvidas, no entanto, em torno do meu alheamento ainda hoje, agora em que escrevo estas palavras, perduram e tenho medo)

Berlim, Fevereiro-Abril 2015

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