quarta-feira, 6 de maio de 2015

a decisão (xi)

          «Estás a perder-te», disse-lhe uma vez mais. As mesas foram se esvaziando sem darmos muito conta disso. Todo o burburinho que se havia instalado esmorecera, todo esse ruído de fundo que anima as conversas, como se todas elas se encadeassem, cada uma dando o mote a outra para uma imensa e grandiosa sinfonia de ruído incompreensível se foi desvanecendo. Uma vez ou outra sobressai uma palavra bem definida, desenhada, articulada com precisão, batida quase mecanicamente, mas de resto é tudo uma modulação, uma contingente subida e descida de notas ruidosas.
          «Sim, tens razão», disse-me, «perco-me sempre demasiado quando a minha língua encontra o ritmo do pensamento e quanto mais me sincronizo, corporal e incorporalmente, porque estão, como sabes, a maior parte do tempo desalinhados ─ e nada disto tem a ver com chakras, por favor ─ porque nos fizeram assim, nos moldaram assim desde que nascemos e fomos para a escola e depois para o exército, ou um emprego. Todos separam o corporal do incorporal, modelaram-te o corpo para te criar uma alma; e quanto mais se alinham, sincronizados ficam o corporal e o incorporal, neste caso língua e pensamento, tudo entra em ebulição, o pensamento corre, foge, adianta-se, procura fluir como uma torrente de água num campo buscando o melhor caminho possível para seguir a sua direcção; e se a língua não consegue acompanhar... repara, o pé está a bater desalmadamente como se seguisse a batida de uma música de fundo, a perna sobe e desce como se fosse um êmbolo de uma máquina a vapor, os olhos percorrem todos os corredores, os rostos de quem nos rodeia e as peles em torno das unhas vão minguando a cada dentada atenta ao teu discurso, às tuas interrupções. Sim, perco-me e apanho já o fio, porque como um tear a lançadeira volta sempre.»
          Realmente eu já tinha reparado como tamborilavam os seus dedos enquanto proferia esta infindável prédica. Aquelas duas gigantescas e ossudas garras que se alargavam e se encolhiam à medida do seu discurso, duas aranhas valsando no ar suspensas nos seus fios, balançando no dorso do vento, como que tinham uma vida própria, mas também estavam comidas pelo tempo e a tensão. Não roía as unhas, mas as peles em redor delas estavam desgastadas pelo nervosismo de um roedor. Nem sei como se prendiam, por qual truque de magia as unhas permaneciam presas à carne daqueles dedos.

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