terça-feira, 5 de maio de 2015

a decisão (x)

          «Escuta então: se eu fosse a ti, se eu, nesse momento, fosse a tua pessoa agiria não como tu estás a pensar ou pensarias agir, mas, justamente, eu por ti enquanto sendo tu, vestindo uma vez mais a farpela de carne que és tu; ou então, se eu estivesse na tua situação e sem vestir a tua carne, sem ser o teu corpo, sem tomar posse desse teu ecrã, sendo eu ainda, eu como sou, agiria diferentemente porque quero dar-te o exemplo a seguir, mostrar-te o que fazeres, porque tu estás a fazer errado e eu correctamente o que se deve fazer, ou o que se irá fazer, o que se deveria fazer, o que se fará. Dito de outro modo, de uma maneira ou de outra eu subsumo-te, elido-te, faço-te desaparecer momentaneamente da equação ou do acontecimento, da decisão, percebes? Mas agora a questão é outra, ou no seguimento destas duas frases outra questão vem a caminho, é-nos endereçada. Esta questão é a que mais me toca, sendo o que para mim torna estas duas frases, esses dois conselhos absurdos.
          «Não existe para mim qualquer separação entre corpo e alma, espírito, mente, o que lhe queiras chamar. Para mim há vida e esta encontra o seu modo de se expressar em várias dimensões, domínios, formas, organizações. Nós somos somente uma das suas possíveis expressões com duas dimensões misturadas, inseparáveis, a corporal e a incorporal, ou se quiseres a física e a metafísica, mas ambas são o mesmo, são vida, percebes? Eu nem vou entrar em todos os pormenores do argumento, ou porque é que o homem inventou a essência que fede, essa imaterialidade. Digo apenas que uma das razões me parece óbvia. Por um estúpido desejo de perdurar quando tudo à sua volta tem uma duração maior que a sua e o seu corpo é tão frágil, apodrece, decai. O homem é uma decadência ambulatória e desde o momento em que escutou o eco da sua voz no silêncio, quando descobriu, nos corredores do seu corpo e na câmara obscura do seu crânio, que a sua voz também se pode escutar no mutismo, sem qualquer sonorização, sem abrir a boca, de imediato imaginou-se preso, encarcerado a si próprio, ao corpo que ele é. Essa voz que escuto sem abrir a boca só pode ser a minha verdadeira voz e se eu não a posso ver nem tocar, nem cheirar, isto só pode significar uma coisa: eu na verdade sou uma coisa imaterial, como o vento, ou todas as coisas imateriais que por o serem têm uma duração mais longa, acompanham o tempo desde a sua criação justo ao seu fim, enquanto a matéria é finita, morre, desaparece. Se eu sou, na realidade, imaterial, eu não posso desaparecer. Perduro, duro a duração do tempo. Quando este invólucro desaparecer, não mais se sustiver, eu fico liberto. Bom, como sabes, depois dessa descoberta houve toda essa literatura mitológica e religiosa, que desde então procuram, através de vários estratagemas e ilusões bem arquitectados, porque ainda hoje elas existem ─ as literaturas, mitologias, religiões ─, procuram, dizia, dar resposta, fundamentar e tornar real essa ficção. Mas já reparaste que tu pensas porque tu falas e te deram à força uma língua e, pelo menos, uma linguagem e não o contrário, falas porque há pensamento, porque pensas? Não interessa, tens razão, já me estou a desviar do assunto que nos trouxe aqui.
          «Escuta, eu sou esta vida, este corpo, sou material e imaterial e tudo aquilo que nos dota de profundidade, ou que parece abrir em nós um espaço mais interior e simultaneamente exterior a tudo, que ninguém pode tocar ou ver, nem nós próprios, essa experiência radical que já nem sequer é a do toque mas propriamente a experiência limite por excelência porque nunca se pode tocar a vida aí onde ela está. Não podes ver nem tocar a vida que apropriaste, mas vê-la e toca-la em todo o lado menos essa que és tu; e tu nada mais és que uma superfície dobrada uma e outra vez, folhos e plissagens, dobras e desdobras sobre dobras. E tudo aquilo que nos dota de profundidade, dizia eu, é enxertado em nós pelos outros, vem dos outros, não és tu, quando tu só és corpo animado, uma expressão entre muitas da vida ─ já não sei há quanto tempo repito isto, mas ninguém dá ouvidos, ou quer dar, não, ninguém quer escutar porque estão demasiado impregnados por essa ilusão e todos querem ser mais do que isso que são, todos querem perdurar mais do que a vida e o acaso permitem.»

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