segunda-feira, 4 de maio de 2015

a decisão (ix)

«Se eu fosse a ti, se eu estivesse no teu lugar... há qualquer coisa de absurdo nestes dois conselhos, que dizem, com diferentes palavras, a mesma coisa, partilham o mesmo significado, baseando-se, ou amparando-se nas ideias de mesmidade e da alma. O que nos dizem essas duas frases? Repara: se eu fosse a ti diz-nos, se eu fosse tu, a tua pessoa, ou seja, se eu estivesse no teu lugar, se eu ocupasse o teu corpo. Logo aqui parece haver um equívoco, quando ambas as frases, na sua busca de aconselhamento, procuram o mesmo significado ou intenção – neste caso um processo de aconselhamento. O primeiro, ou a primeira: só posso ser a tua pessoa se ocupar o teu lugar, mas se eu passar a ser a tua pessoa, tu inteiramente, tu serás eu, estarás no meu lugar. Ora, se assim for, não terei de infinitamente trocar de lugar contigo e adiar indefinidamente o conselho? Parece que não, porque o conselho segue mais adiante. O que acontece então? Eu torno-me a tua pessoa, a tua persona, a tua máscara, visto o teu corpo, a tua carne sem proceder a qualquer encarnação, reencarnação. Tudo se passa como se de uma metempsicose pitagórica se tratasse: a minha lama, desculpa, a minha alma salta do meu corpo, esvaziando-o, para ocupar o teu corpo, agindo por ti de modo a dar curso ao meu conselho. Ou seja, tu deixas de existir, porque eu sou tu nesse momento, no teu lugar, ocupando o teu corpo, vestindo a tua carne e quando todos pensam que és tu quem fala, quem age, quem olha, prova, se movimenta, etc., sou eu por ti, eu no teu lugar, no teu corpo, falando com a tua voz e a tua língua batendo no palato, nos dentes, nos lábios, sou tu pegando nas coisas com luvas de carne, ou sentando-me nas tuas traseiras almofadas suculentas, mexendo a musculatura para ir aqui e ali, vendo com as tuas dioptrias, ingerindo, sendo como se o teu corpo fosse um veículo, um carro, um transporte de serviço público.
«Pode ser até que tu nem saltes para o meu corpo, fazendo com que o conselho se adie, seja deferido. Pode ser até que estejas escondido dentro de ti, mas se assim for a segunda frase deixa de fazer sentido, entramos numa pura impossibilidade, se acreditamos que só este mundo existe, com esta matéria, esta física e esta razoabilidade que nos molda o discurso, a língua, o mundo. Como sabes, ou se não sabes passas a saber, costuma-se dizer que duas coisas não podem ocupar o mesmo espaço ao mesmo tempo, ou seja, eu não posso ocupar o teu lugar sem que tu deixes de o ocupar, que mo deixes livre e cesses de existir. Porém, a questão é mesmo essa: ao querer aconselhar-te, dando início ao processo com a condicionante se eu estivesse no teu lugar, duas coisas se passam ou podem passar. A primeira assevera o seguinte, no seguimento do que tenho vindo a dizer: para a situação, a qual o meu conselho se dirige, implica que, eu sendo eu mesmo e nunca deixando de o ser, me torne como que a tua negação, ou forço o teu momentâneo desaparecimento para ocupar o teu lugar deixado vago, sendo que sem deixar de ser eu eu serei tu, nessa situação, nesse tempo e nesse lugar em que estarei, porque na verdade és tu quem deve agir estando eu no teu lugar ─ que pesadelo isto seria se assim fosse, não é verdade? A segunda não é tão literal como possamos escutar no que é dito na frase, decorrendo antes do pressuposto de que a minha vida é um exemplo a ser seguido (senão toda pelo menos para essa situação, mas a questão, então, que vem à boca acertadamente é esta: e essa situação não será um microcosmos de uma vida? Ao aconselhar-te não estou a afirmar a excelência da minha vida, do meu pensamento, do meu raciocínio, a adequação das minhas acções e exemplo que terás de seguir, assumir ou imitar?)

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