«Se eu fosse a ti, se
eu estivesse no teu lugar... há qualquer coisa de absurdo nestes
dois conselhos, que dizem, com diferentes palavras, a mesma coisa,
partilham o mesmo significado, baseando-se, ou amparando-se nas
ideias de mesmidade e da alma. O que nos dizem essas duas frases?
Repara: se eu fosse a ti
diz-nos, se eu fosse tu, a tua pessoa, ou seja, se eu
estivesse no teu lugar, se eu
ocupasse o teu corpo. Logo aqui parece haver um equívoco, quando
ambas as frases, na sua busca de aconselhamento, procuram o mesmo
significado ou intenção – neste caso um processo de
aconselhamento. O primeiro, ou a primeira: só posso ser a tua pessoa
se ocupar o teu lugar, mas se eu passar a ser a tua pessoa, tu
inteiramente, tu serás eu, estarás no meu lugar. Ora, se assim for,
não terei de infinitamente trocar de lugar contigo e adiar
indefinidamente o conselho? Parece que não, porque o conselho segue
mais adiante. O que acontece então? Eu torno-me a tua pessoa, a tua
persona, a tua
máscara, visto o teu corpo, a tua carne sem proceder a qualquer
encarnação, reencarnação. Tudo se passa como se de uma
metempsicose pitagórica se tratasse: a minha lama, desculpa, a minha
alma salta do meu corpo, esvaziando-o, para ocupar o teu corpo,
agindo por ti de modo a dar curso ao meu conselho. Ou seja, tu deixas
de existir, porque eu sou tu nesse momento, no teu lugar, ocupando o
teu corpo, vestindo a tua carne e quando todos pensam que és tu quem
fala, quem age, quem olha, prova, se movimenta, etc., sou eu por ti,
eu no teu lugar, no teu corpo, falando com a tua voz e a tua língua
batendo no palato, nos dentes, nos lábios, sou tu pegando nas coisas
com luvas de carne, ou sentando-me nas tuas traseiras almofadas
suculentas, mexendo a musculatura para ir aqui e ali, vendo com as
tuas dioptrias, ingerindo, sendo como se o teu corpo fosse um
veículo, um carro, um transporte de serviço público.
«Pode ser até que tu nem saltes
para o meu corpo, fazendo com que o conselho se adie, seja deferido.
Pode ser até que estejas escondido dentro de ti, mas se assim for a
segunda frase deixa de fazer sentido, entramos numa pura
impossibilidade, se acreditamos que só este mundo existe, com esta
matéria, esta física e esta razoabilidade que nos molda o discurso,
a língua, o mundo. Como sabes, ou se não sabes passas a saber,
costuma-se dizer que duas coisas não podem ocupar o mesmo espaço ao
mesmo tempo, ou seja, eu não posso ocupar o teu lugar sem que tu
deixes de o ocupar, que mo deixes livre e cesses de existir. Porém,
a questão é mesmo essa: ao querer aconselhar-te, dando início ao
processo com a condicionante se eu estivesse no teu lugar,
duas coisas se passam ou podem passar. A primeira assevera o
seguinte, no seguimento do que tenho vindo a dizer: para a situação,
a qual o meu conselho se dirige, implica que, eu sendo eu mesmo e
nunca deixando de o ser, me torne como que a tua negação, ou forço
o teu momentâneo desaparecimento para ocupar o teu lugar deixado
vago, sendo que sem deixar de ser eu eu serei tu, nessa situação,
nesse tempo e nesse lugar em que estarei, porque na verdade és tu
quem deve agir estando eu no teu lugar ─
que pesadelo isto seria se assim fosse, não é verdade? A segunda
não é tão literal como possamos escutar no que é dito na frase,
decorrendo antes do pressuposto de que a minha vida é um exemplo a
ser seguido (senão toda pelo menos para essa situação, mas a
questão, então, que vem à boca acertadamente é esta: e essa
situação não será um microcosmos de uma vida? Ao aconselhar-te
não estou a afirmar a excelência da minha vida, do meu pensamento,
do meu raciocínio, a adequação das minhas acções e exemplo que
terás de seguir, assumir ou imitar?)
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