Há muito que tinha perdido o hábito de trazer empunhado um relógio
e como os telemóveis, hoje, têm como acessório a função que os
originou, fazendo tudo ou quase tudo que se possa imaginar, guiava-me
por ele, era por ele que sabia as horas. Ora, não o tendo comigo,
julgava-o perdido algures na cidade causa da minha fuga precipitada,
não sabendo ao certo quanto tempo levaria desde esse telefone
público ao restaurante localizado no centro da cidade, decidi não
perder mais tempo e dirigi-me de imediato para o encontro. Percorri,
por sobre as cabeças e o topo dos prédios algum sinal da antena de
televisão, esse panóptico vigiando toda a cidade. Eu sei que há lá
um restaurante – não era esse, no entanto, onde se travaria o
nosso encontro – mas nada me tira a suspeita de que esse
restaurante, esse sim, é uma fachada, um cenário e a antena cumpre,
precisamente, a função vigilante e controladora do panóptico de
Bentham. Lá dei por ela, iluminada como um farol para os náufragos
como eu. Indo até lá pouco me custaria encontrar o caminho para o
restaurante no centro da cidade. Só quando passei pela antena me
apercebi o quanto tinha pedalado e o estado de alheamento que tomou
posse de mim. Tendo o caos assentado praça no território dos
afectos e este, como um icebergue vogando nas águas gélidas do
Atlântico, abalando a razão da sua tranquilidade, afundando-a
nessas mesmas escuras águas, fez-me andar pela cidade como um
autómato, movido por uma mecanização instintiva que me levou a
essa parte da cidade do Lago Branco. Atravessei um dos montes da
metrópole, descendo para a planície do Meio, onde decerto,
juntamente com o meu amigo, daria início à caçada a esse monstro
que se alapou a mim, me precipitou nesta estúpida fuga. Aterrou-me
esta ideia, como igualmente o facto de me ter automatizado, por assim
dizer. O que terei feito durante este dia e o que realmente terá
acontecido nesses últimos instantes que me conduziram a um estado
quase vegetativo, quase comatoso, não tendo, ainda hoje, agora que
escrevo estas páginas, qualquer lembrança, senão essa ideia de que
a realidade se desrealizou, perdera a sua materialidade, a sua
textura, essa que lhe dá dignidade, que a faz ser o que nos envolve
enquanto a cosemos? Se alguém ler estas páginas muito acertadamente
apontará que uma vez que a cosemos a realidade, então, não tem por
si mesma textura, ou materialidade, que a realidade não pertence ao
domínio da matéria descobrindo-se no outro lado do espectro,
justamente sendo espectral, sendo de outro domínio, o da
imaterialidade. Poderei concordar, claro, mas neste caso, então,
significa que eu perdi nesses instantes, nesses momentos caóticos
levando-me à estúpida e precipitada fuga justo até ao meu
despertar, ou seja, após o telefonema, o fio com que coso a
realidade, com que doo textura e materialidade e isso é ainda mais
aterrador, porque a realidade continuou lá onde sempre esteve nesse
silencioso e secreto processo de construção acordado por tudo o que
existe, menos por mim. Podia tranquilizar-me, no entanto, pois de
novo coloquei os gonzos nos seus eixos, no eixo do mundo e este
autómato já ganhava carne e a fome dava-lhe um novo sentido à
realidade. Por vezes, digo eu agora, é preciso perder o tino, a
razão, o que nos sustenta na segurança que nos faz ignorar,
exactamente, esta relação às coisas, às pessoas, a nós, ao mundo
até levarmos uma enorme chapada na cara, neste caso uma fome
primitiva que arredou de mim qualquer desrazão, qualquer tormento.
Claro que se tratava de uma chapada e uma fome de primeiro mundo, ou
seja, uma coisa ridícula se pensarmos bem nisso e compararmos essa
fome à de outros; mas como estamos quase sempre centrados no nosso
pessoalíssimo mundo acreditamos ser essa fome a maior e mais cruel –
dou-me conta, também agora, que a influência do meu amigo teve um
alcance maior do que o esperado: estas palavras, creio, são mais
suas do que minhas, repito, são dele, não minhas.
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