Do pouco que me lembro de todo esse tempo, da manhã da minha parva e
precipitada fuga pedalando ao longo do rio, passando pelas pontes que
o romantizam, cheias de cadeados de amores que talvez hoje já nem
existam, mas colocados e alocados à vista, esses aloquetes que
prometem um amor que apenas se abrirá com a chave dos amantes, ou
então com o alicate que os corta. Pouco me lembro por onde passei.
Tenho uma vaga lembrança de ter entrado num espaço fechado e
luminoso que me atraiu, como uma vela ou lâmpada atrai as borboletas
e demais insectos, cheio de espelhos e luzes brancas. Lembro
vagamente ainda de ter falado com alguém que me tratou com
delicadeza e educação, que me guiou pelo espaço, lentamente, na
minha rectaguarda, parando defronte a cubos de vidro elevados por
colunas rectangulares brancas. Depois de ter ficado de olhar retido
num cubo por mais tempo do que nos outros, a pessoa conduziu-me a uma
longa mesa e de seguida saí. Fiquei parado à porta desse espaço ainda alguns
segundos mais, mãos nos bolsos do casaco, punhos cerrados e coração
de novo descompassado, com a sensação de que tudo retornava, tudo
aquilo que tinha sido desanuviado com a pedalada ao longo do rio e as
pontes que o reticulam. Ali parado, olhava a minha bicicleta, uma mão
apoiando o rosto sucumbido ao peso do alheamento e do
não-saber-o-que-fazer, a outra ainda teimosamente fechada no bolso
do casaco. Não sei quanto tempo isso levou ou o que estava a
acontecer, sei que acabei por procurar o meu telefone em todos os
bolsos repetidas vezes. Tê-lo-ia perdido? Revirei os bolsos:
chaves, algumas moedas, lenços de papel usados e secos de tanto uso,
sacos de plástico para os cães, as luvas que por alguma razão
voltaram a surgir nos bolsos, o B.I. e o meu cartão multibanco, como
também uma caixa negra. O mais certo, pensava eu na altura, é tê-lo
deixado em casa e, de facto, deixei como vim mais tarde a saber.
Despertei, por assim dizer, dessa modorra quando reparei, mesmo
diante mim, uma dessas desabitadas e solitárias ilhas outrora sempre
concorridas. Dirigi-me a ela, resguardei-me entre as suas duas
paredes de vidro estilhaçado – estas ilhas, cada vez mais, são
alvo de violência porque o seu uso, hoje em dia, é quase nulo –,
peguei no auscultador, inseri umas quantas moedas e marquei um
número. Por alguma razão, talvez ainda sujeito ao caos dos últimos
instantes, não liguei para ela mas para um amigo que decerto me
podia ajudar a perceber o que se passou e o que deveria fazer. Na
verdade, foi uma sorte ou um golpe do destino, diria eu se fosse
supersticioso, ter o seu número decorado, bem como apanhá-lo em
casa e em boa disposição. É que só poderia ser ele quem me podia
libertar do apuro, tal como fez em boa hora, só podia ser ele e o
seu pragmatismo, a sua lógica cirúrgica, o seu determinismo
desapaixonado. Fiz, portanto, a chamada para o meu amigo, marcando um
encontro com ele num restaurante porque ele estava com fome e,
afinal, era já quase noite e eu nem sequer tinha dado conta,
iluminado pelas costas por toda a luz que emanava do espaço.
Concedi, porque não, jantar já que jejuava desde manhã, pedalei
pela cidade e de certo modo mais desperto agora, por ter travado essa
curta conversa com o meu amigo, reparei dolorosamente que estava com
uma fome monstra. Marcámos encontro para um restaurante que ambos
conhecíamos no centro da cidade.
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