quinta-feira, 30 de abril de 2015

a decisão (v)

 Do pouco que me lembro de todo esse tempo, da manhã da minha parva e precipitada fuga pedalando ao longo do rio, passando pelas pontes que o romantizam, cheias de cadeados de amores que talvez hoje já nem existam, mas colocados e alocados à vista, esses aloquetes que prometem um amor que apenas se abrirá com a chave dos amantes, ou então com o alicate que os corta. Pouco me lembro por onde passei. Tenho uma vaga lembrança de ter entrado num espaço fechado e luminoso que me atraiu, como uma vela ou lâmpada atrai as borboletas e demais insectos, cheio de espelhos e luzes brancas. Lembro vagamente ainda de ter falado com alguém que me tratou com delicadeza e educação, que me guiou pelo espaço, lentamente, na minha rectaguarda, parando defronte a cubos de vidro elevados por colunas rectangulares brancas. Depois de ter ficado de olhar retido num cubo por mais tempo do que nos outros, a pessoa conduziu-me a uma longa mesa e de seguida saí. Fiquei parado à porta desse espaço ainda alguns segundos mais, mãos nos bolsos do casaco, punhos cerrados e coração de novo descompassado, com a sensação de que tudo retornava, tudo aquilo que tinha sido desanuviado com a pedalada ao longo do rio e as pontes que o reticulam. Ali parado, olhava a minha bicicleta, uma mão apoiando o rosto sucumbido ao peso do alheamento e do não-saber-o-que-fazer, a outra ainda teimosamente fechada no bolso do casaco. Não sei quanto tempo isso levou ou o que estava a acontecer, sei que acabei por procurar o meu telefone em todos os bolsos repetidas vezes. Tê-lo-ia perdido? Revirei os bolsos: chaves, algumas moedas, lenços de papel usados e secos de tanto uso, sacos de plástico para os cães, as luvas que por alguma razão voltaram a surgir nos bolsos, o B.I. e o meu cartão multibanco, como também uma caixa negra. O mais certo, pensava eu na altura, é tê-lo deixado em casa e, de facto, deixei como vim mais tarde a saber. Despertei, por assim dizer, dessa modorra quando reparei, mesmo diante mim, uma dessas desabitadas e solitárias ilhas outrora sempre concorridas. Dirigi-me a ela, resguardei-me entre as suas duas paredes de vidro estilhaçado – estas ilhas, cada vez mais, são alvo de violência porque o seu uso, hoje em dia, é quase nulo –, peguei no auscultador, inseri umas quantas moedas e marquei um número. Por alguma razão, talvez ainda sujeito ao caos dos últimos instantes, não liguei para ela mas para um amigo que decerto me podia ajudar a perceber o que se passou e o que deveria fazer. Na verdade, foi uma sorte ou um golpe do destino, diria eu se fosse supersticioso, ter o seu número decorado, bem como apanhá-lo em casa e em boa disposição. É que só poderia ser ele quem me podia libertar do apuro, tal como fez em boa hora, só podia ser ele e o seu pragmatismo, a sua lógica cirúrgica, o seu determinismo desapaixonado. Fiz, portanto, a chamada para o meu amigo, marcando um encontro com ele num restaurante porque ele estava com fome e, afinal, era já quase noite e eu nem sequer tinha dado conta, iluminado pelas costas por toda a luz que emanava do espaço. Concedi, porque não, jantar já que jejuava desde manhã, pedalei pela cidade e de certo modo mais desperto agora, por ter travado essa curta conversa com o meu amigo, reparei dolorosamente que estava com uma fome monstra. Marcámos encontro para um restaurante que ambos conhecíamos no centro da cidade.

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