Como de costume entrou esbaforindo, de rompante, não como se
quisesse fazer uma entrada espectacular, impressionante, triunfal,
dizendo na sua teatralidade, eis-me, cheguei, os vossos queixos
podem cair de estupefacção, eu, esta espécie de salvador irei
socorrer as vossas mentes e corações da dormência a que foram
remetidos. Não, de todo. A sua entrada era na verdade
atabalhoada, desajeitada; por exemplo, o facto da porta principal ter
espessas cortinas impedindo o frio do exterior de entrar
desnecessariamente dificultou, a bem dizer, os seus movimentos
naturais, ele mais parecia um insecto enredado numa teia de aranha.
Houve até quem sorrisse com o espalhafato, para além de mim. Quando
me viu acenou e num passo apressado juntou-se a mim, estendendo
energicamente o braço e a mão para um aperto, enquanto tirava da
sua cabeça o chapéu que a protegia. Tirou depois o seu cachecol e o
sobretudo, permanecendo com o seu blazer de lã quadriculada – eu
não sou muito dado à moda, na verdade sou bem avesso, sabendo,
contudo, que é inevitável, no tempo em que vivemos, não sermos de
certa maneira rotulados e apanhados num discurso, somos quase
forçados a entrar nesse mundo; tenho, porém, um certo sentido
estético, sei coordenar e conjugar cores e padrões e assim passar
despercebido, mas ele! Há quem se esforce por parecer qualquer coisa
que para ele é completamente natural, faz parte do se carácter; ele
talvez até demore o seu tempo a escolher, olhando o seu
guarda-roupa, o que vestir nesse dia, só que parece, bastas vezes,
que a sua decisão é feita no escuro ou de olhos fechados,
simplesmente realizada pelo toque, tal é o modo como se apresenta
combinando cores e padrões que nada têm a ver, como pôr chocolate
numa sardinha assada. Bom, não era pelo seu sentido de moda o que
nos aproximava e prezava mais nele, mas bem, como já disse, o seu
pragmatismo, a sua fervente inteligência. Assim que se sentou
confortavelmente na sua cadeira a rapariga tatuada trouxe o menu e
ele pediu um copo de vinho para me fazer companhia. Trocámos as
primeiras palavras rapidamente, o “como vais?”, o “o que tens
feito?” e demais perguntas e respostas da morna sociabilidade,
educação e cortesia; e fazia-mo-lo enquanto deitávamos o olho à
carta e mentalmente escolhíamos a nossa refeição. Ele sabia,
porém, que este não era um encontro só para pôr a conversa em
dia, assuntos mais sérios e prementes nos juntavam nessa noite de
inverno.
«O que aconteceu, diz-me lá, consegui perceber no teu tom de voz
quando me telefonaste que alguma coisa te preocupava. Espero que não
seja nada grave. Alguém morreu?»
«Não, não, que eu saiba não»
«Então?»
«Eu não sei bem o que aconteceu»
«Como assim não sabes o que aconteceu? Tornaste-te um caso de
amnésia temporária por acaso?»
«Talvez»
Ele olhava-me com algum espanto e incredulidade, mas eu não sabia
como explicar quando eu próprio desconhecia o que terá sucedido.
Quando me perguntou do que me lembrava contei-lhe o que se passou até
ao momento em que perdi o sentido da realidade.
«Percebo», disse cruzando os braços, meditabundo, naquela forma
peculiar só dele e que nunca tinha reparado alguém fazer antes, não
escondendo as mãos por trás dos braços entrecruzados mas ambas
apertando-os ou aconchegando-os como se tivesse frio. Fez silêncio,
como se pensasse profundamente, assim julgava eu, quando afinal
esperava que eu continuasse, «e o que lhe respondeste?»
«O que lhe respondi? O que queres dizer?»
«Mas não te deste conta do que disseste, do que me contaste, não
te ouviste, continuas um autómato como te descreveste? Ela fez-te
uma pergunta, colocou-te entre a espada e a parede, como se costuma
dizer e foi isso, creio eu, que te endoideceu» e repetiu a pergunta.
Alguma coisa se iluminou na minha cabeça e como se tivesse sido
projectado no tempo comecei a reviver mentalmente toda a situação,
mas sem fuga desta vez. Eu tinha de chegar a uma conclusão, tinha de
lhe dar uma resposta, só que eu não conseguia, nesse momento que me
precipitou porta fora, nem agora frente ao meu amigo chegar a uma
conclusão. Tomado por uma forte angústia e uma cobardia, à falta
de melhor substantivo adjectivante que expresse e qualifique a minha
falsa incapacidade resolutiva, cometi o segundo erro do dia e
perguntei-lhe:
«Se tu fosses eu, se estivesses no meu lugar, o que farias?»
Empalideceu. As olheiras das suas longas horas de estudo e leitura
aprofundaram-se ou sobressaíram dando ao rosto um aspecto estranho,
diria com intenções homicidas, por isso foi um bocado inesperado o
que se seguiu e que tento apontar com a maior justeza e precisão que
me é possível, passado já algum tempo desde a nossa conversa.
Sem comentários:
Enviar um comentário