domingo, 3 de maio de 2015

a decisão (viii)

 Como de costume entrou esbaforindo, de rompante, não como se quisesse fazer uma entrada espectacular, impressionante, triunfal, dizendo na sua teatralidade, eis-me, cheguei, os vossos queixos podem cair de estupefacção, eu, esta espécie de salvador irei socorrer as vossas mentes e corações da dormência a que foram remetidos. Não, de todo. A sua entrada era na verdade atabalhoada, desajeitada; por exemplo, o facto da porta principal ter espessas cortinas impedindo o frio do exterior de entrar desnecessariamente dificultou, a bem dizer, os seus movimentos naturais, ele mais parecia um insecto enredado numa teia de aranha. Houve até quem sorrisse com o espalhafato, para além de mim. Quando me viu acenou e num passo apressado juntou-se a mim, estendendo energicamente o braço e a mão para um aperto, enquanto tirava da sua cabeça o chapéu que a protegia. Tirou depois o seu cachecol e o sobretudo, permanecendo com o seu blazer de lã quadriculada – eu não sou muito dado à moda, na verdade sou bem avesso, sabendo, contudo, que é inevitável, no tempo em que vivemos, não sermos de certa maneira rotulados e apanhados num discurso, somos quase forçados a entrar nesse mundo; tenho, porém, um certo sentido estético, sei coordenar e conjugar cores e padrões e assim passar despercebido, mas ele! Há quem se esforce por parecer qualquer coisa que para ele é completamente natural, faz parte do se carácter; ele talvez até demore o seu tempo a escolher, olhando o seu guarda-roupa, o que vestir nesse dia, só que parece, bastas vezes, que a sua decisão é feita no escuro ou de olhos fechados, simplesmente realizada pelo toque, tal é o modo como se apresenta combinando cores e padrões que nada têm a ver, como pôr chocolate numa sardinha assada. Bom, não era pelo seu sentido de moda o que nos aproximava e prezava mais nele, mas bem, como já disse, o seu pragmatismo, a sua fervente inteligência. Assim que se sentou confortavelmente na sua cadeira a rapariga tatuada trouxe o menu e ele pediu um copo de vinho para me fazer companhia. Trocámos as primeiras palavras rapidamente, o “como vais?”, o “o que tens feito?” e demais perguntas e respostas da morna sociabilidade, educação e cortesia; e fazia-mo-lo enquanto deitávamos o olho à carta e mentalmente escolhíamos a nossa refeição. Ele sabia, porém, que este não era um encontro só para pôr a conversa em dia, assuntos mais sérios e prementes nos juntavam nessa noite de inverno.
«O que aconteceu, diz-me lá, consegui perceber no teu tom de voz quando me telefonaste que alguma coisa te preocupava. Espero que não seja nada grave. Alguém morreu?»
«Não, não, que eu saiba não»
«Então?»
«Eu não sei bem o que aconteceu»
«Como assim não sabes o que aconteceu? Tornaste-te um caso de amnésia temporária por acaso?»
«Talvez»
 Ele olhava-me com algum espanto e incredulidade, mas eu não sabia como explicar quando eu próprio desconhecia o que terá sucedido. Quando me perguntou do que me lembrava contei-lhe o que se passou até ao momento em que perdi o sentido da realidade.
«Percebo», disse cruzando os braços, meditabundo, naquela forma peculiar só dele e que nunca tinha reparado alguém fazer antes, não escondendo as mãos por trás dos braços entrecruzados mas ambas apertando-os ou aconchegando-os como se tivesse frio. Fez silêncio, como se pensasse profundamente, assim julgava eu, quando afinal esperava que eu continuasse, «e o que lhe respondeste?»
«O que lhe respondi? O que queres dizer?»
«Mas não te deste conta do que disseste, do que me contaste, não te ouviste, continuas um autómato como te descreveste? Ela fez-te uma pergunta, colocou-te entre a espada e a parede, como se costuma dizer e foi isso, creio eu, que te endoideceu» e repetiu a pergunta.
Alguma coisa se iluminou na minha cabeça e como se tivesse sido projectado no tempo comecei a reviver mentalmente toda a situação, mas sem fuga desta vez. Eu tinha de chegar a uma conclusão, tinha de lhe dar uma resposta, só que eu não conseguia, nesse momento que me precipitou porta fora, nem agora frente ao meu amigo chegar a uma conclusão. Tomado por uma forte angústia e uma cobardia, à falta de melhor substantivo adjectivante que expresse e qualifique a minha falsa incapacidade resolutiva, cometi o segundo erro do dia e perguntei-lhe:
«Se tu fosses eu, se estivesses no meu lugar, o que farias?»
Empalideceu. As olheiras das suas longas horas de estudo e leitura aprofundaram-se ou sobressaíram dando ao rosto um aspecto estranho, diria com intenções homicidas, por isso foi um bocado inesperado o que se seguiu e que tento apontar com a maior justeza e precisão que me é possível, passado já algum tempo desde a nossa conversa.

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