Conduzi pela cidade longamente, o dia passou pelas minhas pernas e o
cansaço que se podia esperar de tanta pedalada não se fez notar uma
única vez. Posso hoje dizer, agora que escrevo estas linhas para me
certificar que a realidade é real, que tudo o que antecedeu o meu
encontro com o meu amigo tem a mesma textura, partilha o mesmo
tecido, o mesmo véu que faz a realidade ser ela mesma. Não que o
nosso encontro não tenha sido igualmente desconcertante, como
também não sei se conseguirei apontar, palavra a palavra, todo o
seu discurso, todo o seu profundo discurso. Quando reler estas
páginas, em especial a prédica que me concedeu em torno do meu
problema, da razão de me ter posto na alheta, como se costuma dizer,
de ter escapado, fugido daqueles últimos instantes, sei que em nada
se comparam à realidade do seu discurso. São as minhas palavras
sobre o que ouvi, preciso de me lembrar disso, porque, de facto,
muitos filtros se intrometeram já: 1) o que ele pensou, 2) isso que
ele pensou mudado para a linguagem em tempo real perante mim, dois
momentos separados por micro-segundos e ilusoriamente dados como o
mesmo momento; depois, 3) o filtro que cobre ou protege as minhas
percepções como a audição, que não é nem se dá como o de outra
pessoa qualquer, cada um é uma variação de uma pequeníssima
diferença que faz, absolutamente, toda a diferença; sem esquecer 4)
o modo como o que é escutado se conecta com a outra pessoa, como uma
particular linguagem ou idiolecto se conecta com o idiolecto da outra
pessoa, por vezes procedendo por ligação directa, dando a sensação
do óbvio, outras vezes rangendo, como se duas máquinas devessem se
ligar mas as partes que cumprem essa função estão desajustadas,
por não se moldarem, por falta de óleo, eu sei lá e então rangem,
saltam, matraqueiam, dando como resultado a incompreensão, os
equívocos, os mal-entendidos e 5) como tudo isso foi passado para
estas páginas, mediatizado, diferido e deferido no tempo e no
espaço. Tudo isso tenho de ter em conta quando reler o seu discurso,
sabendo de antemão que o que escrevi, a cópia de todo o seu palrar,
é uma versão do que foi dito, a minha versão da sua versão –
quererá isto dizer que, por isso mesmo, também isto é ilusório?
Continuo mergulhado nessa impalpável realidade? Não, não posso
crer nisso, não posso perdurar nestas dúvidas, de mais a mais agora
que tudo está esclarecido, que os pontos estão nos is, que
acertámos os nossos ritmos.
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