quarta-feira, 29 de abril de 2015

a decisão (iv)

 Conduzi pela cidade longamente, o dia passou pelas minhas pernas e o cansaço que se podia esperar de tanta pedalada não se fez notar uma única vez. Posso hoje dizer, agora que escrevo estas linhas para me certificar que a realidade é real, que tudo o que antecedeu o meu encontro com o meu amigo tem a mesma textura, partilha o mesmo tecido, o mesmo véu que faz a realidade ser ela mesma. Não que o nosso encontro não tenha sido igualmente desconcertante, como também não sei se conseguirei apontar, palavra a palavra, todo o seu discurso, todo o seu profundo discurso. Quando reler estas páginas, em especial a prédica que me concedeu em torno do meu problema, da razão de me ter posto na alheta, como se costuma dizer, de ter escapado, fugido daqueles últimos instantes, sei que em nada se comparam à realidade do seu discurso. São as minhas palavras sobre o que ouvi, preciso de me lembrar disso, porque, de facto, muitos filtros se intrometeram já: 1) o que ele pensou, 2) isso que ele pensou mudado para a linguagem em tempo real perante mim, dois momentos separados por micro-segundos e ilusoriamente dados como o mesmo momento; depois, 3) o filtro que cobre ou protege as minhas percepções como a audição, que não é nem se dá como o de outra pessoa qualquer, cada um é uma variação de uma pequeníssima diferença que faz, absolutamente, toda a diferença; sem esquecer 4) o modo como o que é escutado se conecta com a outra pessoa, como uma particular linguagem ou idiolecto se conecta com o idiolecto da outra pessoa, por vezes procedendo por ligação directa, dando a sensação do óbvio, outras vezes rangendo, como se duas máquinas devessem se ligar mas as partes que cumprem essa função estão desajustadas, por não se moldarem, por falta de óleo, eu sei lá e então rangem, saltam, matraqueiam, dando como resultado a incompreensão, os equívocos, os mal-entendidos e 5) como tudo isso foi passado para estas páginas, mediatizado, diferido e deferido no tempo e no espaço. Tudo isso tenho de ter em conta quando reler o seu discurso, sabendo de antemão que o que escrevi, a cópia de todo o seu palrar, é uma versão do que foi dito, a minha versão da sua versão – quererá isto dizer que, por isso mesmo, também isto é ilusório? Continuo mergulhado nessa impalpável realidade? Não, não posso crer nisso, não posso perdurar nestas dúvidas, de mais a mais agora que tudo está esclarecido, que os pontos estão nos is, que acertámos os nossos ritmos.

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