Dirigi-me para a direita, segui a rua até ao seu final, passando a
piscina pública transpirando a lixívia, a igreja presbiteriana ou
russa ortodoxa, sinceramente não sei se uma ou a outra, sei somente
que quando há ofício os homens vêm de fato escuro, todos muito
semelhantes entre eles e, muitos deles, com chapéus e as mulheres de
saias compridas e camisas brancas com folhos e xailes floreados, ou
de tons igualmente escuros. Subi a passagem que se dirige para o
Hospital público e guinei para o parque que segue o curso do rio,
pelo menos assim julgo me ter conduzido longe do prédio, do pátio
interior, das escadas que sobem até ao apartamento, da porta
limitando-o, dela e desses últimos instantes. Eu já nem sei
precisá-los. O que aconteceu está demasiado embrulhado. Sei que
falámos, trocámos palavras, discutimos ideias, sei que se acendeu
qualquer coisa entre nós, em cada um e, depois, tudo ficou
indistinto: veio o descompasso do coração, o tremor das mãos, a
secura da língua, o deserto salgando as cordas da garganta, a
respiração desenfreada, como se naqueles reduzidos metros do
apartamento tivesse corrido a maratona, a ausência do sexo na voz, a
variação de silêncio, austero, monástico, aquático, as bombas
auriculares estagnadas nos meus ouvidos como se o crânio, um terrível
senhorio, tivesse desalojado o cérebro e no seu lugar hospedado o
coração, viajando por este corpo acima, tal era o industrioso labor
do sangue nos tímpanos. E de vez em quando a sua maviosa voz
falando, sobressaindo do silêncio ou tirando a minha cabeça da lama
em que chafurdava para de novo ser mergulhada. Começou também nesse
momento a desrealização da realidade, o que os olhos viam era uma
ilusão, o que percepcionava ou quem percepcionava já não era eu,
ou era eu vendo-me a ver e desacreditando da realidade. Não sei se
me consigo explicar melhor: era eu que ali estava vendo mas como se
tivesse outros olhos por trás dos meus olhos vendo em duplicado,
vendo o que eu via sem me ver a ver, sem me vendo. Não era uma
experiência de desmaterialização do corpo, eu não tinha saído de
mim mesmo e pairava brumosamente em torno de mim vendo-me. O que se
passou foi isso que estou a tentar dizer: eu via, eu estava ali e
via, mas o que via era estranho, como se eu estivesse a ver o que
acontecia de modo diferente ao que estava acostumado a percepcionar.
Eu tinha-me tornado estranho a mim mesmo. Alguém estava no meu lugar
e esse alguém era eu. Eu via o que eu estava a ver, não com um
atraso, mas simultaneamente, em duplicado. Talvez por isso tudo
estivesse a ficar confuso, ou ainda esteja ou me explique
confusamente.
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