Atravessando a porta que dava para o pátio interior, som e imagem
cambiavam a sua indistinção, ora um se tornava mais claro, ora
outro. Por vezes, o som bramido das alturas trespassava o ar e dava
conta que os tais últimos instantes, que me precipitaram porta fora
em desorientada fuga, decorriam ainda em aceso lume; outras vezes,
era o cenário exterior do mundo que se materializava, me dizia
silenciosamente a sua palpabilidade, que os meus olhos permaneciam
nas suas órbitas e só a minha experiência da realidade, digamos a
minha consciência, se cindia, se dividia, ou para usar uma palavra
cara ao meu amigo, se dobrava. O som, as vozes, os gritos já não
faziam parte da minha realidade agora, nem o quarto, nem ela. Eu
estava ainda encerrado numa sala (embora me encontrasse já a
atravessar o corredor da saída do prédio transportando a minha
bicicleta, abrisse já a porta para a rua usando não sei que
processos circenses de equilíbrio, numa mão a pesada bicicleta do
século passado, talvez da década de sessenta ou setenta, uma
bicicleta mais velha do que eu, a outra abrindo o trinco e puxando a
porta para que ambos saíssemos – fosse outra a disposição de
humor e toda essa palhaçada, essa macaqueada que realizei, com os
pedais a chutarem as minhas canelas, o guiador enfiando-se no meu
estômago num soco de um peso mosca, a porta entravada pela roda
dianteira umas duas ou três vezes no tempo certo da comédia e tudo
isso me poria a rir de mim mesmo – estacando na rua, reconhecendo o
espaço, o cenário que montaram para mim, olhando para um lado e
para o outro, para a direita e para a esquerda, ansiando que um dos
lados me indicasse o caminho a tomar); e nessa sala assistia a um
concerto de religiosos Sufi batendo os seus tambores e ritmando a
música com as suas audíveis respirações. Toda essa trupe cantando
numa língua para mim completamente desconhecida, a língua do ritmo
de uma respiração e da batida de tambores, tudo isso era eu motrido
por este caos, à falta de melhor palavra para descrever a confusão
que me dominava. Eu sei que os meus pés calcavam já o passeio de
pedra, que as mãos geladas pelo frio de inverno amparavam a
bicicleta que não se erguia por si própria, já que não tinha
descanso, eu via tudo o que me rodeava, os carros estacionados ou
matraqueando no basalto, outras tantas bicicletas encadeadas em
armações enterradas nos passeios de propósito para os ciclistas,
as árvores nuas abanadas pelo vento, que segundo os meteorologistas
provinha das estepes siberianas – um vento laminado que entrava por
nós a dentro, nos trespassava, nos varava, invadindo este território
que procurei fechar com o fecho-éclair e os botões, as luvas de lã
com feltro por dentro, o gorro semelhante às luvas, esse vento das
estepes um Gengis Khan cavalgando com o seu exército e com a sua
cimitarra cerceando o calor que se queria isolado –, pessoas
sentadas no café da esquina bebendo bebidas quentes e fumando os
seus cigarros, toda a mistura de vapores exalados, a merda dos cães
nos canteiros que os donos se “esqueciam” de apanhar (quantas
vezes me irritava quando, apanhando a merda que a minha cadela
largava, pisava a de outro cão!), o sol esbranquiçado por trás de
uma neblina em redoma por todo o céu – não seria isto,
precisamente, um sinal de que tudo era um cenário? Eu quase que
podia contar quantos segundos separavam a passagem de um carro de um
outro, aqueles homens erguendo o cigarro até à boca para a próxima
inalação, ou a caneca ou chávena fumegante aos lábios receosos de
se queimarem. Uma boa equipa científica que procurasse realizar esta
experiência não teria de, em vez de tudo organizar segundo uma
mecanização rítmica, os movimentos dos intérpretes e dos
objectos, permitir o acesso do acaso? Uma certa liberdade de
improvisação dos elementos cénicos? Não seria isso mais próximo
da realidade, levando-me a crer que afinal isto era real e não um
drama que se dispunha aos meus olhos, uma experiência? Mas que sei
eu? Eu não sou assim tão perspicaz, esperto ou inteligente, embora
não totalmente estúpido ou burro. Parvoíce, tudo somente parvoíce.
Já me tinham dito ser um pouco paranóico; e só hoje posso, agora
em que escrevo estas palavras, em que procuro perceber o que se
passou e como cheguei à decisão que cheguei, colocar estas questões
e procurar entendê-las. Então, naquele momento, realmente, tudo
estava confuso.
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