segunda-feira, 20 de abril de 2015

A decisão (ii)

 Atravessando a porta que dava para o pátio interior, som e imagem cambiavam a sua indistinção, ora um se tornava mais claro, ora outro. Por vezes, o som bramido das alturas trespassava o ar e dava conta que os tais últimos instantes, que me precipitaram porta fora em desorientada fuga, decorriam ainda em aceso lume; outras vezes, era o cenário exterior do mundo que se materializava, me dizia silenciosamente a sua palpabilidade, que os meus olhos permaneciam nas suas órbitas e só a minha experiência da realidade, digamos a minha consciência, se cindia, se dividia, ou para usar uma palavra cara ao meu amigo, se dobrava. O som, as vozes, os gritos já não faziam parte da minha realidade agora, nem o quarto, nem ela. Eu estava ainda encerrado numa sala (embora me encontrasse já a atravessar o corredor da saída do prédio transportando a minha bicicleta, abrisse já a porta para a rua usando não sei que processos circenses de equilíbrio, numa mão a pesada bicicleta do século passado, talvez da década de sessenta ou setenta, uma bicicleta mais velha do que eu, a outra abrindo o trinco e puxando a porta para que ambos saíssemos – fosse outra a disposição de humor e toda essa palhaçada, essa macaqueada que realizei, com os pedais a chutarem as minhas canelas, o guiador enfiando-se no meu estômago num soco de um peso mosca, a porta entravada pela roda dianteira umas duas ou três vezes no tempo certo da comédia e tudo isso me poria a rir de mim mesmo – estacando na rua, reconhecendo o espaço, o cenário que montaram para mim, olhando para um lado e para o outro, para a direita e para a esquerda, ansiando que um dos lados me indicasse o caminho a tomar); e nessa sala assistia a um concerto de religiosos Sufi batendo os seus tambores e ritmando a música com as suas audíveis respirações. Toda essa trupe cantando numa língua para mim completamente desconhecida, a língua do ritmo de uma respiração e da batida de tambores, tudo isso era eu motrido por este caos, à falta de melhor palavra para descrever a confusão que me dominava. Eu sei que os meus pés calcavam já o passeio de pedra, que as mãos geladas pelo frio de inverno amparavam a bicicleta que não se erguia por si própria, já que não tinha descanso, eu via tudo o que me rodeava, os carros estacionados ou matraqueando no basalto, outras tantas bicicletas encadeadas em armações enterradas nos passeios de propósito para os ciclistas, as árvores nuas abanadas pelo vento, que segundo os meteorologistas provinha das estepes siberianas – um vento laminado que entrava por nós a dentro, nos trespassava, nos varava, invadindo este território que procurei fechar com o fecho-éclair e os botões, as luvas de lã com feltro por dentro, o gorro semelhante às luvas, esse vento das estepes um Gengis Khan cavalgando com o seu exército e com a sua cimitarra cerceando o calor que se queria isolado –, pessoas sentadas no café da esquina bebendo bebidas quentes e fumando os seus cigarros, toda a mistura de vapores exalados, a merda dos cães nos canteiros que os donos se “esqueciam” de apanhar (quantas vezes me irritava quando, apanhando a merda que a minha cadela largava, pisava a de outro cão!), o sol esbranquiçado por trás de uma neblina em redoma por todo o céu – não seria isto, precisamente, um sinal de que tudo era um cenário? Eu quase que podia contar quantos segundos separavam a passagem de um carro de um outro, aqueles homens erguendo o cigarro até à boca para a próxima inalação, ou a caneca ou chávena fumegante aos lábios receosos de se queimarem. Uma boa equipa científica que procurasse realizar esta experiência não teria de, em vez de tudo organizar segundo uma mecanização rítmica, os movimentos dos intérpretes e dos objectos, permitir o acesso do acaso? Uma certa liberdade de improvisação dos elementos cénicos? Não seria isso mais próximo da realidade, levando-me a crer que afinal isto era real e não um drama que se dispunha aos meus olhos, uma experiência? Mas que sei eu? Eu não sou assim tão perspicaz, esperto ou inteligente, embora não totalmente estúpido ou burro. Parvoíce, tudo somente parvoíce. Já me tinham dito ser um pouco paranóico; e só hoje posso, agora em que escrevo estas palavras, em que procuro perceber o que se passou e como cheguei à decisão que cheguei, colocar estas questões e procurar entendê-las. Então, naquele momento, realmente, tudo estava confuso.

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