domingo, 19 de abril de 2015

A decisão (i)

(durante os próximos dias irei pondo à vossa disposição, parágrafo a parágrafo, este conto escrito nas pausas do meu trabalho enquanto lavador de pratos num restaurante em berlim. espero que apreciem e, se assim entenderem, partilhem)

 Quando a porta bateu já eu descia as escadas quase desenfreadamente. Sei que a porta bateu, porque bate sempre, sempre se fecha, mas o seu som, o batido, o fecho, deu-se demasiado longe dos meus ouvidos. Eles estavam por demais ocupados, pelo que, embora certo de que o trinco encontrou o fecho e a porta cumpriu o seu propósito de limiar da entrada do apartamento, o seu som foi quase por completo abafado. Nos ouvidos só o coração bombeando, um coração que no peito galopava freneticamente, fazendo com que a respiração se acelerasse, uma estranha tensão se acumulasse na nuca, na base, no gonzo que permite ao crânio algum movimento limitado; e o sangue, assim me parecia, pressionava os nervos dos meus olhos, humedecendo-os, mas não eram lágrimas, digamos antes uma tensão aquosa. Mais ao longe eu percebia gritos que se distanciavam com a descida em corrida. Não sei quem gritava, se seria ela ou outra qualquer pessoa no prédio. Estes gritos tinham entrado naquela dimensão na qual a voz perde o seu sexo – se alguma vez uma voz teve sexo ou género –, tudo se torna indistinto, variações guturais, animalescas, um som estridente, agudo e simultaneamente grave, em que toda a razão está ausente. Claro que só posso falar desses gritos nestes termos visto que me distanciava, correndo escada abaixo, degrau a degrau. E se estivesse no espaço em que os gritos emanavam por certo entenderia um género, distinguiria um raciocínio, uma lógica qualquer pertinente e associada ao motivo dos urros, mas eu já ia longe nas escadas, enquanto o meu cérebro se achava envolto numa densa bruma que me afligia. Tudo em mim corria, os olhos perdidos e gazeados mergulhando para um interior, vendo as escadas sob os meus pés vogarem à medida dos passos, o corrimão e as traves que o sustentavam vistos na perspectiva do movimento, fugindo e, simultaneamente, enquanto me davam o mundo exterior os olhos interiorizavam-se, voltavam-se para a memória dos últimos instantes, esses que me conduziram a esta fuga precipitada, como se eles, os olhos, tivessem ficado para trás, ficado lá no apartamento. Não era uma montagem, nada disto era cinematográfico, tratava-se de uma intimidade que escapa a tal processo. A imagem não se dividia, nem se sobrepunham duas numa transparência pelicular, nada disto era uma fotomontagem. Era, talvez, uma pura dobragem, como diria o meu amigo, eu via o mundo diante mim e ao mesmo tempo os olhos permaneciam no espaço daqueles últimos instantes. O que me afligia e dava um ambiente quase fantasmagórico, alucinante, talvez esquizofrénico é que o mundo, mais do que aqueles últimos instantes, esse, sim, era falso. Talvez tudo não fosse mais que um cenário de cartão e um sistema de roldanas e rodas dentadas com cordas, bielas e manivelas, movido por não sei que maligno demiurgo ou equipa científica e tudo isto uma experiência clínica e eu estou ainda no apartamento, ou no cenário do apartamento e o mundo está a passar diante dos meus olhos com o único intuito de me fazer perder o nexo.

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