(durante os próximos dias irei pondo à vossa disposição, parágrafo a parágrafo, este conto escrito nas pausas do meu trabalho enquanto lavador de pratos num restaurante em berlim. espero que apreciem e, se assim entenderem, partilhem)
Quando a porta bateu já eu descia as escadas quase desenfreadamente.
Sei que a porta bateu, porque bate sempre, sempre se fecha, mas o seu
som, o batido, o fecho, deu-se demasiado longe dos meus ouvidos. Eles
estavam por demais ocupados, pelo que, embora certo de que o trinco
encontrou o fecho e a porta cumpriu o seu propósito de limiar da
entrada do apartamento, o seu som foi quase por completo abafado. Nos
ouvidos só o coração bombeando, um coração que no peito galopava
freneticamente, fazendo com que a respiração se acelerasse, uma
estranha tensão se acumulasse na nuca, na base, no gonzo que permite
ao crânio algum movimento limitado; e o sangue, assim me parecia,
pressionava os nervos dos meus olhos, humedecendo-os, mas não eram
lágrimas, digamos antes uma tensão aquosa. Mais ao longe eu
percebia gritos que se distanciavam com a descida em corrida. Não
sei quem gritava, se seria ela ou outra qualquer pessoa no prédio.
Estes gritos tinham entrado naquela dimensão na qual a voz perde o
seu sexo – se alguma vez uma voz teve sexo ou género –, tudo se
torna indistinto, variações guturais, animalescas, um som
estridente, agudo e simultaneamente grave, em que toda a razão está
ausente. Claro que só posso falar desses gritos nestes termos visto
que me distanciava, correndo escada abaixo, degrau a degrau. E se
estivesse no espaço em que os gritos emanavam por certo entenderia
um género, distinguiria um raciocínio, uma lógica qualquer
pertinente e associada ao motivo dos urros, mas eu já ia longe nas
escadas, enquanto o meu cérebro se achava envolto numa densa bruma
que me afligia. Tudo em mim corria, os olhos perdidos e gazeados
mergulhando para um interior, vendo as escadas sob os meus pés
vogarem à medida dos passos, o corrimão e as traves que o
sustentavam vistos na perspectiva do movimento, fugindo e,
simultaneamente, enquanto me davam o mundo exterior os olhos
interiorizavam-se, voltavam-se para a memória dos últimos
instantes, esses que me conduziram a esta fuga precipitada, como se
eles, os olhos, tivessem ficado para trás, ficado lá no
apartamento. Não era uma montagem, nada disto era cinematográfico,
tratava-se de uma intimidade que escapa a tal processo. A imagem não
se dividia, nem se sobrepunham duas numa transparência pelicular,
nada disto era uma fotomontagem. Era, talvez, uma pura dobragem, como
diria o meu amigo, eu via o mundo diante mim e ao mesmo tempo os
olhos permaneciam no espaço daqueles últimos instantes. O que me
afligia e dava um ambiente quase fantasmagórico, alucinante, talvez
esquizofrénico é que o mundo, mais do que aqueles últimos
instantes, esse, sim, era falso. Talvez tudo não fosse mais que um
cenário de cartão e um sistema de roldanas e rodas dentadas com
cordas, bielas e manivelas, movido por não sei que maligno demiurgo
ou equipa científica e tudo isto uma experiência clínica e eu
estou ainda no apartamento, ou no cenário do apartamento e o mundo
está a passar diante dos meus olhos com o único intuito de me fazer
perder o nexo.
Sem comentários:
Enviar um comentário