Tendo o caos assentado praça no território dos afectos e este, como
um icebergue vogando nas águas gélidas do Atlântico, abalando a
razão da sua tranquilidade, afundando-a nessas mesmas escuras águas,
fez-me andar pela cidade como um autómato, movido por uma
mecanização instintiva que me levou a essa parte da cidade do Lago
Branco. Atravessei um dos montes da metrópole, descendo para a
planície do Meio, onde decerto, juntamente com o meu amigo, daria
início à caçada a esse monstro que se alapou a mim, me precipitou
nesta estúpida fuga. Aterrou-me esta ideia, como igualmente o facto
de me ter automatizado, por assim dizer. O que terei feito durante
este dia e o que realmente terá acontecido nesses últimos instantes
que me conduziram a um estado quase vegetativo, quase comatoso, não
tendo, ainda hoje, agora que escrevo estas páginas, qualquer
lembrança, senão essa ideia de que a realidade se desrealizou,
perdera a sua materialidade, a sua textura, essa que lhe dá
dignidade, que a faz ser o que nos envolve enquanto a cosemos? Se
alguém ler estas páginas muito acertadamente apontará que uma vez
que a cosemos a realidade, então, não tem por si mesma textura, ou
materialidade, que a realidade não pertence ao domínio da matéria
descobrindo-se no outro lado do espectro, justamente sendo espectral,
sendo de outro domínio, o da imaterialidade. Poderei concordar,
claro, mas neste caso, então, significa que eu perdi nesses
instantes, nesses momentos caóticos levando-me à estúpida e
precipitada fuga justo até ao meu despertar, ou seja, após o
telefonema, o fio com que coso a realidade, com que doo textura e
materialidade e isso é ainda mais aterrador, porque a realidade
continuou lá onde sempre esteve nesse silencioso e secreto processo
de construção acordado por tudo o que existe, menos por mim. Podia
tranquilizar-me, no entanto, pois de novo coloquei os gonzos nos seus
eixos, no eixo do mundo e este autómato já ganhava carne e a fome dava-lhe um novo sentido à realidade. Por vezes, digo eu agora, é
preciso perder o tino, a razão, o que nos sustenta na segurança que
nos faz ignorar, exactamente, esta relação às coisas, às pessoas,
a nós, ao mundo até levarmos uma enorme chapada na cara, neste caso
uma fome primitiva que arredou de mim qualquer desrazão, qualquer
tormento. Claro que se tratava de uma chapada e uma fome de primeiro
mundo, ou seja, uma coisa ridícula se pensarmos bem nisso e
compararmos essa fome à de outros; mas como estamos quase sempre
centrados no nosso pessoalíssimo mundo acreditamos ser essa fome a
maior e mais cruel – dou-me conta, também agora, que a influência
do meu amigo teve um alcance maior do que o esperado: estas palavras,
creio, são mais suas do que minhas, repito, são dele, não minhas.
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