sexta-feira, 17 de abril de 2015

A decisão (um conto ou novela em progresso)

 Tendo o caos assentado praça no território dos afectos e este, como um icebergue vogando nas águas gélidas do Atlântico, abalando a razão da sua tranquilidade, afundando-a nessas mesmas escuras águas, fez-me andar pela cidade como um autómato, movido por uma mecanização instintiva que me levou a essa parte da cidade do Lago Branco. Atravessei um dos montes da metrópole, descendo para a planície do Meio, onde decerto, juntamente com o meu amigo, daria início à caçada a esse monstro que se alapou a mim, me precipitou nesta estúpida fuga. Aterrou-me esta ideia, como igualmente o facto de me ter automatizado, por assim dizer. O que terei feito durante este dia e o que realmente terá acontecido nesses últimos instantes que me conduziram a um estado quase vegetativo, quase comatoso, não tendo, ainda hoje, agora que escrevo estas páginas, qualquer lembrança, senão essa ideia de que a realidade se desrealizou, perdera a sua materialidade, a sua textura, essa que lhe dá dignidade, que a faz ser o que nos envolve enquanto a cosemos? Se alguém ler estas páginas muito acertadamente apontará que uma vez que a cosemos a realidade, então, não tem por si mesma textura, ou materialidade, que a realidade não pertence ao domínio da matéria descobrindo-se no outro lado do espectro, justamente sendo espectral, sendo de outro domínio, o da imaterialidade. Poderei concordar, claro, mas neste caso, então, significa que eu perdi nesses instantes, nesses momentos caóticos levando-me à estúpida e precipitada fuga justo até ao meu despertar, ou seja, após o telefonema, o fio com que coso a realidade, com que doo textura e materialidade e isso é ainda mais aterrador, porque a realidade continuou lá onde sempre esteve nesse silencioso e secreto processo de construção acordado por tudo o que existe, menos por mim. Podia tranquilizar-me, no entanto, pois de novo coloquei os gonzos nos seus eixos, no eixo do mundo e este autómato já ganhava carne e a fome dava-lhe um novo sentido à realidade. Por vezes, digo eu agora, é preciso perder o tino, a razão, o que nos sustenta na segurança que nos faz ignorar, exactamente, esta relação às coisas, às pessoas, a nós, ao mundo até levarmos uma enorme chapada na cara, neste caso uma fome primitiva que arredou de mim qualquer desrazão, qualquer tormento. Claro que se tratava de uma chapada e uma fome de primeiro mundo, ou seja, uma coisa ridícula se pensarmos bem nisso e compararmos essa fome à de outros; mas como estamos quase sempre centrados no nosso pessoalíssimo mundo acreditamos ser essa fome a maior e mais cruel – dou-me conta, também agora, que a influência do meu amigo teve um alcance maior do que o esperado: estas palavras, creio, são mais suas do que minhas, repito, são dele, não minhas.

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