segunda-feira, 15 de setembro de 2014

o romance em weiserstrasse/ die Romanze in Weiserstrasse

nem a gabardina nem o guarda-chuva evitaram nessa tarde a maré
há meses a subir e sedimentando a fadiga ao longo do teu corpo
soçobrar-te. mal nos juntámos num amplexo o teu rosto buscou o sossego
do meu peito e o teu choro juntou-se à morna bátega caindo em Hermannplatz.
para além da dor também certas doações são propriedade privada

partilhadas na intimidade mesmo quando o u-bahn está cheio
bastou mantermos o abraço e o teu rosto voltado para a janela
onde pela parede correm os cabos que dão vida a estes Leviatãs
e enquanto avançávamos talvez imaginasses a ficar
para trás essa angústia que te cerca os dias e as noites

como seria bom imagino-te ainda a pensar
agora que escrevo isto e já o nosso abraço se soltou
que a cada estação passada os tormentos abandonassem
a carruagem agarrados aos passageiros como os fungos
às altas árvores restando somente nós ainda nesse abraço

o qual durou a curta viagem a Boddinstrasse. à saída
ofereceste-me um mapa plastificado para nem mesmo sob a chuva
as tuas ou as minhas lágrimas me perca e saiba sempre voltar
a ti e fizeste-me levar-nos a Weiserstrasse onde um Ozu da década de 1930
nos mostraria que numa fatídica noite de uma criança equilibrando-se febrilmente

entre a vida e a morte bem e mal são posições intermutáveis tomadas
face a um comum sentimento cuja proximidade distância ou presença
de laços sanguíneos nada significam – na sua forma humana
Deus e o Diabo têm um coração e partem de madrugada
compartindo um cigarro representando a farsa da amizade

e assim é até ao virar da esquina e desaparecerem do nosso olhar
tal como nós do de toda a gente enlaçando as mãos
caminhando pelo pavimento húmido tornado céu nocturno
de tão negro e refractando estelarmente todo o tipo de luz
e é sobre esta via irisada que novamente caio com o teu passo batendo ao fundo

as pernas torneadas e elevadas pelas curtas botas realçadas sedutoramente
o corpo rasgando o breu no cingido vestido e tua maviosa voz por toda a Urbanstrasse
e no labirinto dos meus ouvidos falando já não de pesadelos antes dos sonhos
que tu e eu e nós desejamos ternamente para além do bem e do mal
da vida e da morte e de Deus e o Diabo que fumam os cigarros que nós já não

porém a caminho de Wilmsstrasse o problema posto para o passeio era duro e difícil
pois uns sonhos por vezes chocam na sua imaterialidade com outros
é-se novo demais para enraizar e velho demais para partir
mas se nada fazes olharás para trás e passarás os últimos anos lamentando-te
e um trabalho é para viver ou para sobreviver é para a aventura da vida

ou o encobrimento da miséria e tudo isso pesado na balança do amor
que resposta poderás dar? é o medo ou a indecisão que te silencia?
é a subida de contínuos degraus até à tua cama nas nuvens a tua presença
em todo o lado no escuro do teu quarto e a aposta cega no futuro
mais ainda se na separação do sono tu me procurares e o abraço durar até ao dia que vem

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