quarta-feira, 6 de agosto de 2014

oh como o passado se arrasta e perdura
sobe lenta e profusamente perdendo-se na tua boca
até eclodir enchameando a noite de tensas dores
fúteis frustrações crispando o corpo
fechando o cerco do punho erguendo muros no coração

o que tu dizes o que eu digo
contínuas melopeias de mal-entendidos
nem somos nós os corpos as vozes tão presentes
na dança trágica dessa momentânea paixão invertida
tragando-nos vorazmente apartando-nos

se durante o dia os corvos pairam sobre berlim
quantas noites crocitamos nós invectivas
palavras negras e agudas penetrando e ferindo o imo
porque a desrazão etílica queima a língua
e abre as comportas das barragens do azedume e da fel

avolumadas no dédalo dos sentidos
projectando no ecrã dos nossos rostos macabras máscaras
enquanto a carne se transforma em madeira ou metal
fios brotam de imprevistos nós (e nem somos nós etc.)
e a cidade confunde-se com um cenário de pesadelo

ou teatro de marionetas mal o passado assim investe
e tudo o que era luminoso e aberto em nós
langorosas paisagens de desejo dando ainda os seus rebentos
se cala e se esconde até um novo dia ou a assinatura
de um tratado de paz selado com beijos musculados

o que das nossas vidas nos opõe um ao outro
que aprendizagem ou experiências ergueram essas obstinadas
defesas que teimam e em tensão espreitam
em surdina pelo gesto palavra atitude ou hábito
abalando o mundo até o soltar dos seus eixos

que limite têm esses espaços interiores onde somente
o que de nós habita no outro passa e percorre
clandestinamente como predador e presa
acolhendo o inimigo para melhor agredir o amado
e no entanto move-se poder-se-ia dizer do amor

precisamente por entre as injúrias os silêncios nos burburinhos
quando a fera amansa numa prolongada inspiração
e o corpo se entrega ao cansaço
não do combate mas do seu contínuo embate
no indelicado quarto em que se vê encerrado

não posso adiar o amor disse o poeta solar e nós
sabêmo-lo porque o sentimos fulgir
atravessando-nos como um cometa o céu
até que nos reconhecemos já nús dessas trapaças
cortados os fios recuperada a carne o coração batendo

e murmuramos como se rezássemos tudo
isto foi um pesadelo eu vou acordar eu vou acordar eu vou acordar
e sim despertamos como um desmaiado
por entre destroços e mortos após um bombardeamento
e tudo é estranhamente familiar

mas talvez tenhamos ido longe demais
e a cada vez retomamos desse ponto avançado cada vez mais cegos
e esquecidos das nossas verdadeiras vontades e intenções
porque o meu lamento é de amor e não de ódio
é uma canção triste de alguém que perdeu o fio e o busca

e não quer perder o que já perdeu e hoje
tenho a clarividência de que o amor não se aprende nem uma relação
é diferente pelas passadas a cada vez e sempre é a novidade
brotando dos corpos demasiado doentes pelo passado
mergulhando-os nos fantasmas da repetição

Sem comentários: