Título - Hipopótamos em Delagoa Bay
Autor - Carlos Alberto Machado
Editora - Abysmo
Depois
das guerras políticas e nacionais, das fraticídas e civis, apresenta-se hoje um
livro sobre o processo revolucionário, os seus sonhos e erros. Um livro que procura
intrometer-se, precisamente, no espaço afiançado pela segunda epígrafe que
antecede a ficção. Nela, pode ler-se, pelas mãos de Félix Guattari e Gilles
Deleuze: “O livro-máquina de guerra, contra o livro-aparelho de Estado” (p.13);
tal como uma revolução, essa suspensão ou acontecimento, para alguns filósofos.
Mas o que é, justamente, uma revolução, o que propõe? E não será antes a
insurreição, o gesto de suspensão por excelência, o acontecimento em si,
escapando à verdade e ao tempo, que se afirma, afinal, como uma irrupção da
vida, a nómada máquina de guerra que se opõe ao monólito do aparelho de Estado?
Diria que sim, uma vez que o aparelho captura a máquina, apropria-se do
território suave estriando-o e da insurreição, do acontecimento intempestivo,
se faz o acontecimento crónico a inscrever-se numa História, do gesto passa-se
para o processo que destrói, apaga, erradica, escolhe segundo uma linguagem de
poder e saber que busca cortar com o passado. Daí, talvez, a recorrência, a
repetição da pesada frase de pretérito imperfeito: “Era a Revolução”.
Este
é o primeiro romance publicado – pois creio que haja outros na gaveta – de
Carlos Alberto Machado (1954), poeta e dramaturgo afirmado na literatura
portuguesa, embora escape tantas vezes aos críticos e aos meios publicitários,
já que a sua longa produção foi toda criada à margem das grandes casas
editoriais. Deve-se a ele e à sua companheira, igualmente, uma das mais
novíssimas editoras, a Companhia das Ilhas, sediada na Ilha do Pico, a qual tem
apostado nos géneros mais desfavorecidos pelo mercado nacional, tal como a
poesia, o teatro, o conto breve; e a preços incrivelmente reduzidos, dando
oportunidade, quer a autores já reconhecidos, quer a desconhecidos. Essa é uma
das suas aventuras literárias, outra é este romance sobre Moçambique.
Não
se pense ser “Hipopótamos em Delagoa Bay” um romance histórico, tendo embora o
autor feito a sua investigação in loco, graças a uma “Bolsa Criar
Lusofonia”, bem como se socorrido de obras históricas e crónicas várias. Este é
um livro-mistura, mostrando exemplarmente de onde vem o autor no campo da
literatura e da vida. Saltando tempos, seguimos a genealogia da família
Quaresma, entrecruzando-se com vários momentos da História de Moçambique, a
revolução de Abril e a luta pela independência e o seu processo revolucionário,
mas não é aqui que melhor se entende o que afirmei do autor nem a mistura. A
estrutura do romance não segue as regras nem a forma de um romance típico,
encontrando o seu fundo experimental no seio desses romances que o tornaram o
género do século xx, aventura que poucos ainda prosseguem; mas se, por vezes, o
experimentalismo narrativo se revela frio, demasiado racional ou mental, Carlos
Alberto Machado introduz o que o distingue, o seu traço, o de um homem que fez
vida no teatro. Contra o frio e o mental o autor propõe palavras-afectos,
palavras que têm de ser ditas oralmente, forçam-nos mesmo a dizê-las e este é
um processo singular: as personagens não precisam de caracterização física nem
psicológica pois elas ganham corpo somente pelo afecto do discurso, enredado
nele; os seus discursos nem provêm do espaço solitário do pensamento tantas
vezes analítico, são palavras que vêm do corpo, com sangue, batidas de coração
vindo à boca, não sendo elas menos racionais ou menos solitárias, simplesmente
estão vivas. Uma escrita que do papel nos move a boca. E entre estes afectos,
as palavras e acontecimentos que fizeram Moçambique e a sua revolução. A
palavra-afecto pertence à insurreição e à máquina de guerra nómada, o inverno
mental e o processo revolucionário pertence à máquina-aparelho de Estado.
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