sexta-feira, 30 de agosto de 2013

Jack Kerouac



Título: Pela Estrada Fora, o rolo original
Autor: Jack Kerouac
Editora: Relógio d'Água
Tradução: Margarida Vale do Gato

          Infelizmente já não me recordo bem qual o primeiro livro de Kerouac que li, porém todos eles estão marcados por acontecimentos que afectaram a minha leitura. Recordo os “Vagabundos de Dharma” numa edição de bolso, primeira edição portuguesa pela Ulisseia, creio eu, onde na capa, em relevo, se podia tocar num coração – esse estava intacto ao tacto enquanto o meu partido – lido de uma assentada, madrugada fora, no Jardim Diana; lembro o “Big Sur”, já em recuperação mas exausto de umas férias de abusos dos meus vinte anos – e imensamente me tocou o cansaço de Duluoz, o alter-ego de Kerouac; “Tristessa” e “Os Subterrâneos” coincidindo com o princípio de uma relação conturbada, pela minha parte, porque estava demasiado atormentado por fantasmas e uma geral descrença nas pessoas – porque me tinha sentido abandonado e quase todas as pessoas que conhecia tiveram de reconquistar a minha confiança; “Duluoz, o Vaidoso”, coincidiu com um acerto de contas com todo o meu passado, sentindo-me finalmente refeito para enfrentar novamente o mundo, já este ano. Todavia, entre os dois livros que, com mais certeza, se alçam aos primeiros que li, “O Viajante solitário”, conjunto de contos pela extinta Minerva e, o mais conhecido de todos, “Pela Estrada Fora”, mantêm-se brumosos, embora distintos, lidos quase um a seguir ao outro. Talvez até tenha sido um bom sucedido, não recordar com a clareza devida o livro que lançou Jack Kerouac, pois a leitura deste “rolo original” ofusca – e de que maneira – a edição anterior, também ela editada pela Relógio d'Água.
          Quem conhece o autor e a história por trás da escrita de “Pela Estrada Fora”, anterior à publicação deste presente livro, desconhece, na verdade, a sua real concepção e, de facto, só após a leitura deste “original”, no que respeita ao leitor português que não leu a obra na sua língua de origem – desconhecendo, assim, a influência rítmica, o fluxo, o fluir, a improvisação do jazz da era do bebop, no estilo de Kerouac –, posição na qual me encontro, infelizmente, pode, enfim, ter uma aproximação mais acutilante e precisa do real objecto literário que assoberbou amigos, leitores e críticos. Embora a edição mais conhecida do público em geral – por exemplo, por cá, a edição de 1995, se não estou em erro – contenha todos os traços estilísticos (tais como os saltos narrativos e temporais no interior de um período ou parágrafo, a recorrência e multiplicação dos travessões, as divagações e as derivas poéticas e filosóficas orientalistas, que vieram dar origem, primeiro, ao movimento beat e, de seguida, ao movimento hippy, demarcando-se Kerouac deste último, ou ainda esse ritmo desenfreado e jazzístico de quem escreve no momento o que acontece nesse preciso momento), trata-se de uma obra que passou pela mão “censória” do editor, arranjando, ordenando e limpando a fim de facilitar o leitor. Ora, de outro modo se apresenta o “rolo”. Revela-nos a tradutora, numa cuidada introdução, que o autor colou uma quantidade imensa de folhas em rolo para aplicar na máquina de escrever e, assim, dar livre curso ao seu intento, o de contar as coisas como elas se deram sem interrupções e com essa pressa tão característica de uma criança, dizemos nós, quando nos narra um acontecimento, ou nos quer contar qualquer coisa enquanto está aflito para ir à casa de banho. E, para tal e depois de preparado o rolo, encerrar-se durante três semanas, fuelizado a benzedrina e outras drogas e escrever as suas aventuras pela América de Este a Oeste e de Norte a Sul até ao México atrás de Neal Cassidy. Esta é outra obra, incorrigida, incorrigível, a vida num único fôlego, mais crua, mais dura, mais bruta, brilhante, luminosa e poética, indo para fora cada vez mais para dentro.

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