sexta-feira, 19 de julho de 2013

Thomas Bernhard - Fragmentos de uma cidade moribunda

I

Quando estou cansado, rolo para a praça o meu cérebro,
ponho-me a bater com os pés e faço salmear a vileza dos açougueiros.
Pelo buraco de um carro eléctrico olho para o céu,
atordoado pelo estremecer das folhas e pelo relevo carnudo dos lábios das raparigas.
Refugio-me numa leitaria, onde as pessoas tomam tristemente o pequeno-almoço
e pensam no sol que não volta mais.
Dormem abafadas em casacos cinzentos e pressentem a morte
de muitas colinas verdes.


II

Oiço as vozes dos pássaros sob o firmamento
e o rumorejar do regato.
Para aqui arrasto a nossa aldeia abandonada
e faço sair de milhões de úberes o júbilo do leite!
Lanço mil moedas na capela nupcial,
      que traz a fama aos camponeses bêbados...


III

As luzes vibram cor como carne vermelha nas ruas da meia-noite
e, no entanto, a minha linguagem é a linguagem do vento,
que sopra sobre as pastagens como no primeiro dia
e traz o pavor dos desertos e a saudade que as palmeiras ébrias
têm dos campos do meu pai.


IV

Como o meu pão num lugar à janela e
olho o seu rosto, que se assemelha à carne dos leões
e à destruição.
Vejo gotejar o seu cérebro sobre o tapete degradado das aldeias dos camponeses,
qu nunca beberam tanta dor como nesses dias
em que as abandonei para viver do mel enegrecido da meia-noite
atrás dos meus olhos liquefeitos.


V

Não os chamei, mas eles tornam sombria a minha voz.
Todos, porém, devem saber que eu já não sei rezar,
porque me aviltei num dia de Agosto de 1952,
todos devem saber que eu estou na minha carne sufocado.


VI

Ninguém ouve a minha voz, que me há-de aniquilar.
Eles hão-de cercar a minha casa e entrar pela minha porta e chamar o nome
por que eu dou.
Eles hão-de esquecer que eu também sou o criador da erva
e o conservador do leite e do mel.
Num recanto da tristeza me hão-de bater e assassinar,
quando a neve e o vento e a Primavera chegarem tarde de mais...


in Thomas Bernhard, Na Terra e no Inferno, Lisboa, Assírio & Alvim, col. documenta poética, trad. José A. Palma Caetano, 2000: 69-73.

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