terça-feira, 17 de janeiro de 2012

O Corpo Inglorioso. Uma leitura sobre Night of the Living Dead de George Romero e o Zombie (pt.3)




A luz do Corpo glorioso.
Nos seus últimos livros editados em Portugal1, o filósofo italiano, Giorgio Agamben, tem dado conta, quer isoladamente, quer no seio de uma deambulação teórica das suas investigações, do problema dos redivivos posto à prova nas questões teológicas e ontológicas do homem. Por outras palavras, Agamben questiona as dificuldades dos teólogos que se repercutem na teoria do Corpo Glorioso, do renascido, por um lado e, por outro, no que respeita a fronteira entre o animal e o homem. Abordemos o primeiro conceito, o qual nos dará pistas para a leitura do filme Night of the Living Dead do cineasta norte-americano George Romero.
Embora o tema do corpo glorioso esteja intimamente ligado à teologia, à escatologia, ao fine ultimo e à ressurreição, Agamben chama-nos a atenção de que o assunto, conquanto “congelado” desde a entrada na modernidade, releva uma enorme importância para se pensar o “estatuto ético e político da vida corpórea (o corpo dos ressurrectos é numérica e materialmente o mesmo que tinham durante a sua existência eterna)” e o mesmo se presta para pensar “as figuras e os usos possíveis do corpo humano enquanto tal” 2. (Há que referir que o conceito de ressurreição, aqui, no seio da teologia cristã, é bastante diferente do que se expressa, por exemplo, no “mito de Er” apresentado por Platão na República e repensado pelos neo-platónicos. A esse respeito e de modo a dar a entender a diferença com a metempsicose pitagórica, Jean Derrida sugere o termo plotiniano de metensomatose (métensomatose), ou seja e à letra “troca de corpo” e não de alma. Todavia, esta “troca de corpo”, ao contrário da metempsicose (e da ressurreição) e indo para lá da própria questão de uma simples passagem através dos corpos (do mais simples ao mais complexo), conjuga-se com uma ideia de “comunidade radical do humano e dos outros seres vivos3 assente no que Plotino nomeia de “própria vida” ou “vida mesma” (autozôè), que, como alma, se vê intimamente ligada e separada quer do corpo, quer do Um e do Bem. Não existe, neste entendimento da alma, qualquer atributo próprio ao humano4, podendo ela no seu ressurrecto movimento ser tomada por um corpo qualquer a partir do próprio desejo do corpo em se animar)5. Afirma Agamben, logo de seguida, que o primeiro problema colocado ao teólogo que enfrenta o corpo glorioso – diremos mesmo a qualquer um que busque meditar sobre esta questão – é o da identidade. Haveria de acordo com esse discurso, o de Tomás de Aquino, uma idade ideal (cerca de trinta anos) e o corpo se manteria sem defeitos naturais, num “equilíbrio invariável entre o crescimento e a decadência”6 e conservadas as suas diferenças particulares e distintas, mesmo as sexuais. Mas todo esse discurso do equilíbrio e da indiferenciação se reporta à vida paradisíaca, do Éden reencontrado; outro problema relativo à identidade se descobre em relação à materialidade vivida na Terra, porque o ressurrecto redivive um corpo terráqueo, aquele que terá sido o seu. A questão não fica totalmente respondida pela pena aquinina7; certo é que Agamben se apoiará em Orígenes cuja solução parece mais “elegante e menos confusa”8.
Segundo o filósofo alexandrino o que permanece é um outro corpo, uma imagem (eidos)9 ou figura desse corpo, uma duração imperturbavelmente idêntica alheia às mudanças e transformações materiais. Ora, não de todo imutável pois que no mundo por vir o corpo seria “melhor e mais glorioso”10. O que salta à vista, aqui, será um problema que diz respeito à essência, uma vez que havendo decadência, alteração da matéria, necessário é que alguma coisa perdure no devir. Cremos que há, neste recurso a Orígenes e à imagem, uma incorrecção no uso que Agamben realiza. Embora a imagem se busque como o que perdura de um corpo, essa duração encontra-se sujeita às melhorias do Paraíso, não dura, portanto; e assim sendo, como pode a imagem proporcionar a “semelhança do corpo consigo próprio”, de acordo com o filósofo italiano, se não afirmarmos que mesmo a materialidade em toda a sua decadência, ou o corpo material, não seja já gloriosa? E é ainda forçoso perguntar, que imagem é essa que é vista e por quem, quem é que olha e determina a imagem a perdurar? Poderemos alguma vez reconhecer a nossa imagem, será o nosso eidos o conjunto das nossas qualidades envolvida por uma forma? Ou será antes um decalque, um somatório de todas as imagens que os outros projectam, colam ao nosso corpo? Ou todos verão, então, a mesma imagem? E quando um cego toca no corpo, no rosto, para vê-lo, toca no corpo, no rosto, na imagem? Cremos mesmo que exposição agambeneana da imagem em Profanações, no capítulo O ser especial11, também ela em parte sustentada na teoria de Orígenes, choca em certos pontos com a do corpo glorioso, ao qual voltaremos já de seguida.
A imagem, estando no sujeito, é de natureza insubstancial e traz consigo duas características: 1) não possui uma realidade contínua mas decorre antes de uma geração contínua e a cada instante, é ser de geração, ser de criação e descriação instantânea (servindo-se Agamben, para ilustrar, da “imagem poética” dos anjos no Talmude que “cantam os louvores de Deus e, de repente, mergulham no nada”12); e 2) não é determinável como quantidade, a imagem não é “propriamente uma forma ou uma imagem mas, antes, a «espécie de uma imagem ou de uma forma» (species imaginis et formae) ”13, ou seja, a imagem não é, nem pode ser, mensurável, mas somente dita como espécie de, ou modo de ser, “nunca é coisa, mas, sempre e apenas, uma «espécie de coisa» ”14.
Já aqui nos deparamos com uma chocante diferença no que concerne a não permanência, ou a não durabilidade da imagem, uma vez que ela se cria a cada instante. A imagem não permanece, mas bem acompanha as transformações corpóreas, a imagem acompanha o corpo, a imagem decai com o corpo a cada instante. Na fantástica deambulação etimológica – que sempre, pessoalmente, nos surpreende e ensina, sendo para nós de um imenso prazer – da rede ligada a species deparamo-nos com uma tautologia, já que serve para traduzir o eidos grego. Assim a imagem – que nunca é uma imagem mas sempre e apenas uma espécie de coisa – é uma imagem, uma imagem de uma imagem de coisa – não sairemos de um certo platonismo e dessa triangulação entre a Ideia, a Cópia e o Simulacro. Todavia, dessa repetição, sobressai o sintagma ser especial que reaproxima a imagem ao corpo glorioso. O ser especial, como a imagem, é insubstancial, sem lugar próprio mas dando-se no sujeito; e especial “é o ser cuja essência coincide com o seu dar-se a ver, com a sua espécie [a sua imagem]”15, ou seja, o ser especial, como o corpo glorioso, é aquele que coincide com a sua visibilidade, com a imagem que se revela a cada vez. Se a imagem está no sujeito como um “habitus ou um modo de estar, como a imagem está no espelho”16 – e dever-se-ia adir um modo de ser, tendo em conta essa enorme característica contemporânea de cada sujeito produzir uma imagem idêntica à sua “essência”, à sua “subjectividade”, que dê a ver a sua única, singular, individual pessoa, passível de ser reconhecida por todos, como se todo o processo de revelação da imagem se invertesse, não sendo já a sua espécie que se revela, que vai aflorando e habitando o seu corpo como um fantasma, a tal que seria glorificada no Paraíso, mas, pelo contrário, uma que se impõe de fora para “dentro”, dada como a “verdadeira” – o que o mesmo espelho revela é a não pertença da imagem, da imago, a nós, abre-se um intervalo reconhecido, pelos poetas medievais e reafirmado por Agamben, como amor.
A imagem ou a espécie seguirá outro caminho nas mãos do filósofo italiano, na esteira ainda dos medievais. Espécie significa também intenção (intentio), uma tensão interna (intus tensio) que força a imagem a comunicar-se. Há assim na imagem uma força que a impele a comunicar-se, forçando igualmente cada ser à criação de imagens. Mas o que quer a imagem, ou o que há na imagem, o que entra em jogo colidindo entre si de modo a ser uma tensão? Agamben explica:

Neste sentido, a espécie não é senão a tensão, o amor com que cada um se deseja a si mesmo, com que deseja perseverar no próprio ser, comunicar-se a si próprio. Na imagem, ser e desejar, existência e tentativa coincidem perfeitamente. Amar um outro ser significa: desejar a sua espécie, isto é, o desejo com que esse outro deseja perseverar no seu ser. O ser especial é, neste sentido, o ser comum ou genérico e isto é algo semelhante à imagem ou ao rosto da humanidade.17

É importante reter aqui o sentido do especial como comum ou genérico, porque vai ao encontro da problemática da identidade, desestabilizando-a. O ser especial, como comum ou genérico, diz-se um ser qualquer (esse que habita nas páginas da Comunidade que vem18, o qual é preciso questionar se não fornecerá esclarecimentos quanto ao devir-imperceptível deleuzo-guattariano) alheio às suas qualidades, sendo todas, mas com nenhuma se identificando, sem a elas aderir pessoalmente. A tensão interna aumenta embatendo na tensão que do exterior se faz. O especial não é pessoal mas pode e deve fixar-se numa substância para constituir uma identidade, forçosamente devém pessoa, persona, máscara, por pressões já não internas, mas bem externas:

O especial deve, pois, ser reduzido ao pessoal e este ao substancial. A transformação da espécie num princípio de identidade e classificação é o pecado original da nossa cultura, o seu dispositivo mais implacável. Personaliza-se qualquer coisa – o que se refere a uma identidade – na condição de sacrificar a sua especialidade. Especial é, de facto, um ser, – um rosto, um gesto, um acontecimento – que, não se assemelhando a algum, se assemelha a todos os outros.19

O ser especial é, ou será, pois, uma impessoalidade que de fora se personaliza, tal qual a promessa messiânica que se inscreve, pelo desejo dos outros, no recém-nascido. De acordo com Agamben, ele não é nem comum nem poderá ser objecto de propriedade e, todavia, fazendo-se pessoa, dá-se como e ao ciúme e à propriedade, transforma-se em espectáculo (spectaculum) – aqui, julgamos, sujeito à crítica debordiana. O ser especial, por outro lado, terá uma expressão ligeiramente diferente se o aproximarmos do corpo glorioso, em especial dando atenção às quatro características tratadas por Agamben.
(Haverá, então, um caminho a ser feito por cada um, um trabalho, um “cuidar de si” até ser “ser especial”, começando, cremos nós, por um trabalho do Corpo. Um trabalho, não no sentido de produção de imagem motivada pelas tensões exteriores, como cedendo às modas de “subjectivação”, mas um outro centrado no Corpo e que se encontra num entre-dois. O que esse trabalho implica, através do recurso a um uso diverso do Corpo, é um esbatimento da profundidade, ou melhor, um desvanecimento das diferenças, levando-nos a esclarecer a afirmação de que todos os corpos são corpos gloriosos e não somente os redivivos, os ressurrectos.)
Um corpo glorificado distingue-se pelo seguinte: “impassibilidade, agilidade, subtileza, claridade”20. A primeira característica refere-se a um domínio do corpo, a um reconhecimento das tensões e a um modo de com elas lidar, não se deixando submeter a influências, às paixões, tornando-se capaz de gerir, governar-se21. A subtileza, por outro lado, é essa “espécie de rarefacção extrema” que torna o corpo “semelhante ao ar e ao vento, e portanto penetráveis por outros corpos. Ou tão impalpáveis que se tornarão indiscerníveis de um sopro ou de um espírito”22, identifica-se com a fluidez, essa capacidade de adaptação às forças, aos ritmos, aos meios, aos objectos, aos corpos em jogo. O conceito de fluidez conjuga-se igualmente com o de agilidade dos corpos gloriosos. O Corpo na sua plena potência, aberto a todas as potências de que um Corpo é capaz. O próprio Agamben não se escusa de exemplificar com o bailarino23. A agilidade como plena potência do Corpo será um dos limites do corpo. E, por fim, a claridade (claritas) que, segundo Agamben, entende-se de dois modos: uma “densidade”, uma refulgência aurífica, uma opacidade desconcertante que atrai o olhar; e uma “transparência” cristalina, um desvanecimento como se o olhar atravessasse o corpo, já não o pudesse reconhecer, vendo-o sem o ver. O que estas características pretendem sublinhar, na verdade, é uma perdurabilidade de um corpo semelhante ao terreno, conquanto potenciado. Mas sendo semelhante, mesmo nas suas funções vitais e fisiológicas, como afinal se processam?
Os redivivos comem e bebem, respiram, suam, mictam, defecam, mantêm os seus órgãos, coração, estômago, pulmões, intestinos, sexo? E se já não haverá reprodução, nem necessidade de se alimentar, porque os teólogos sustêm a sua permanência? Se, por um lado, os órgãos permanecem no corpo renascido por mera importação orgânica da imagem terrena, por assim dizer, já os cabelos e as unhas concernem estritamente à ideia da imagem gloriosa, a qual, como já vimos, se congela aos trinta anos, pelo que tudo perdurará pela eternidade inalterado. Os humores mais escatológicos, o suor, a urina, as fezes, mesmo o leite materno e o esperma, tudo isso se encontra ausente no renascimento e estranhos à perfeição do corpo. Já os humores descritos por Galeno, o sangue, a bílis negra e amarela, uma vez que já na terra se reportavam à perfeição possível, terão no redivivo o seu lugar. Ora, o que Agamben realça, através de Tomás de Aquino, é a diferença que se instala na própria função dos órgãos, a sua pura inoperância, que se tornará uma função de ostensiva suspensão. Toda a operação dos órgãos paira na pura ociosidade, na sua completa mostração e somente nela, mostração da sua potência.
Portanto, corpo glorioso “é um corpo ostensivo, cujas funções não são executadas, mas mostradas; a glória é, neste sentido, solidária da ociosidade”24. Esta ostensão e ociosidade propõem um diferente uso do corpo. Parece quase uma generalidade considerar-se qualquer trabalho sobre o corpo isolado de um fim e de um quadro cultural, seja ele religioso, desportista ou artístico, uma ociosidade, um prazer evitável, um valor improdutivo, puro dispêndio de energia Porém, a glorificação do corpo promove um novo uso possível deste, um gesto de suspensão e aliança:

Um novo uso do corpo só é por isso possível se se arrancar a função ociosa à sua separação, e só se se lograr fazer coincidir num único lugar e num único gesto o exercício e a ociosidade, o corpo económico e o corpo glorioso, a função e a sua suspensão. A função fisiológica, a ociosidade e o novo uso insistem no campo de tensão único do corpo e não se deixam separar dele. Porque a ociosidade não é inerte, mas, no acto, faz aparecer a mesma potência que nele se manifestou. Na ociosidade, não é a potência que é desactivada, mas somente os propósitos e as modalidades nos quais o seu exercício fora inscrito e separado. E é esta potência que se torna o órgão de um novo uso possível – o órgão de um corpo cuja organicidade se tornou ociosa e foi suspensa.25


1Falamos, especificamente aqui, de Nudez (2010) e de O Aberto (2011).
22010: 107.
3DERRIDA, 2010: 62. Sublinhamos.
4Ibid.: 61-62. “A possibilidade de uma alma humana passar no corpo de um ser vivo não humano não se vem adicionar como um atributo suplementar a uma alma humana cuja ideia já tenha sido afirmada; a alma surge pelo contrário nessa possibilidade, a partir do que nela precede e excede a humanidade. Tal como a indeterminação que precede a escolha de uma vida, no mito, é também a possibilidade de tornar-se humana, é nela que a humanidade é como que antecipada e projectada; e é à vez a não-humanidade e a humanidade os ganhos da metensomatose”. (La possibilité pour l'âme d'un humain de passer dans le corps d'un vivant non humain ne vient pas s'ajouter comme un attribut supplémentaire à une âme humaine dont l'idée aurait déjà été posée, l'âme se pose au contraire dans cette possibilité, à partir de ce qui en elle-même précède le choix d'une vie, dans le mythe, est aussi la possibilité de devenir humain, c'est en elle que l'humanité est comme anticipé et projetée; et c'est à la fois la non-humanité et l'humanité qui sont l'enjeu de la métensomatose.). Traduzimos.
5Ibid.: 25-26. “A alma é infalível pelo que, nela, se assemelha ao um. É nisso – no que é imóvel – que o corpo deseja tomar parte no processo de animação. A vida corporal sob todos os seus aspectos, dos mais elementares (a vida vegetativa) aos mais complicados (a percepção ou a memória), é a forma que toma um desejo implicado no desejo do um pelo qual a alma se ergue. Isso impede de afirmar que a alma está no corpo sem afirmar primeiro o contrário: é o corpo que está na alma e a alma não entra nele, mas antes ele nela” (L’âme est infaillible par ce qui, en elle, ressemble à l’un. C’est à cela – à ce qui est immobile – que le corps désire prendre part dans le procès de l’animation. La vie corporelle sous tous ses aspects, des plus élémentaires (la vie végétative) aux plus compliqués (la perception ou la mémoire), est la forme que prend un désir impliqué dans le désir de l’un par lequel l’âme se pose elle-même. Ceci empêche d’affirmer que l’âme est dans le corps sans affirmer d’abord le contraire: c’est le corps qui est dans l’âme et l’âme n’entre pas en lui, mais surtout lui en elle). Traduzimos.
6AGAMBEN, 2010: 108.
7Vd. ibid.: 108-109.
8Ibid.: 109.
9É de referir que Agamben se serve deste argumento para apontar como “[a] fotografia é, neste sentido, uma profecia do corpo glorioso”, 2006: 37.
10Orígenes cit. in. ibid.
112006: 75-82.
12Ibid.: 77.
13Ibid.: 78.
14Ibid.
15Ibid.
16Ibid.
17Ibid.: 79-80. Sublinhamos.
18AGAMBEN, 1993.
19AGAMBEN, 2006: 81-82. Sublinhado do autor.
20Id., 2010: 110.
21Ibid. “Significa antes que o corpo não estará sujeito a essas paixões desordenadas que, pelo contrário, o despojariam da sua perfeição. O corpo glorioso estará, com efeito, submetido em todas as suas partes ao domínio da alma racional, por sua vez perfeitamente submetida à vontade divina”.
22Ibid.: 111.
23Ibid.: 112. “Como bailarinos, que se deslocam no espaço sem propósito nem necessidade, os bem-aventurados movem-se nos céus somente a fim de exibirem a sua agilidade”.
24AGAMBEN, 2010: 115.
25Ibid.: 118-119.

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