A
noite revoltada: o mal está no coração do homem.
Comecemos pela micro-estrutura, a qual alimenta, de certa forma, a
macro. Um dos seus signos de corte com o passado com Hollywood
apresenta-se pela introdução de uma certa ironia e humor negro que
provêm da forte influência de uma banda desenhada popular nos anos
50, a Tales from the Crypt da DC comics, de onde Romero
recolheu “muitos dos mesmos ingredientes para os seus jovens
espectadores: gore, cinismo, ironia, wit, relevância”1,
disseminada ao longo do filme e maioritariamente concentrada na
figura do zombie – embora o primeiro sinal de recusa surja ainda
nos primeiros minutos do filme, quando John, o irmão da suposta
heroína Barbara, mimetiza comicamente o Frankenstein de Boris
Karloff, enquanto ridiculariza as crenças religiosas da irmã,
acabando por ser morto por um morto-vivo. Igualmente de relevar a
exploração da lógica do pesadelo, presente na fuga de Barbara do
primeiro zombie – uma fuga do perigo infinita, impossível,
estranha, já que o sujeito corre desenfreadamente, a uma velocidade
estonteante, enquanto o seu opositor no seu andar lento e
desajeitado, francamente incapaz de alguma vez alcançar o fugitivo,
mantém a distância, ou
incrivelmente chega a tocar a quem quer mal – ou os recorrentes
paradoxos temporais e climáticos – ora estamos na Primavera como,
logo a seguir, é Outono, ou, mais flagrantemente, dia na entrevista
em directo na televisão e, pela janela, o breu da noite. Não nos
podemos esquecer dos heróis, tão importantes para o género. Ben é
negro, franco, directo, protector, razoável, forte, tem todas as
qualidades para a sua elevação a herói, porém, nem tem a
possibilidade de criar uma relação amorosa com a protagonista, nem
as suas acções e intenções são completamente “puras”, nem a
sua heroicidade o isenta do fatal fim, o da sua morte, que a todos,
sem excepção, cabe (veremos mais à frente estes dois pontos mais
pormenorizadamente); também à figura feminina passível de se
tornar heroína lhe é cortada cerce a passagem, primeiro é
acometida pela histeria, de seguida uma crescente catatonia, até
que, quando desperta, pronta a vestir o seu papel de heroína tão
esperado pelo espectador, é ironicamente morta pelo seu próprio
irmão. Ora, como antes dissemos, a família e o amor igualmente são
desvirtuados. Não se trata somente da morte de Barbara pelas mãos
do seu morto irmão, mas também a implosão do núcleo Cooper pela
boca do único rebento, Karen, comendo Pai e Mãe, completa inversão
da imagem de Saturno. Se a família implode, se auto-fagia, também o
amor segue a par. O jovem casal de corajosos enamorados, devotos um
ao outro, morre acidentalmente precisamente pelo que os unia, a
(e)terna devoção. Concomitante com estas falências encontra-se
também a criminalização e a fraqueza das forças de poder, do
Estado, do exército, da polícia (não tão cabal em Night of the
Living Dead como nos filmes seguintes;
contudo, neste filme, apoiada pela população, formando um
heteróclito pelotão composto somente de homens brancos, ponto a
que voltaremos mais adiante), ou da ciência, incapaz de
responder ao flagelo nacional – há que sublinhar que mais do que
uma crítica ao mundo, Romero pretende afectar a América. Portanto,
família, amor, devoção, o papel do herói, as forças
normalizadoras, tudo aquilo que competia a Hollywood defender se vê
destruído. E o que, da micro-estrutura do terror e da indústria, é
pervertido, indica, por seu lado, o que da macro-estrutura deve ser
criticado. Assim, antes de abordarmos a desconcertante figura do
zombie, outro elemento da micro-estrutura, o monstro, passemos rápida
e brevemente ao plano geral.
O filme não pode ser desligado do seu tempo, os anos 60. As radicais
transformações pela qual a América passava, elas próprias
reflectindo essa batalha de um presente com um passado, o da cultura
alimentada a medo pela Guerra Fria, a invasão comunista e a
radioactividade da Bomba Atómica, são um motor desencadeante da
vontade de realizar Night of the Living Dead. Não basta
referir que, nascido em 1940, Romero atravessou a sua infância e
adolescência mergulhado numa atmosfera de Apocalipse suspenso, mas
bem que o marcou indelevelmente; disso são exemplo a importância
das janelas barricadas e a louca discussão em torno da cave, ambas
símbolo de perigo e da segurança contra a ameaça nuclear. A cave,
particularmente, “com a sua arrumação aprumada de comida, TV e
outras semelhantes facilidades” afirmava e impulsionava os valores
familiares, uma vez que “o abrigo familiar era simultaneamente a
apoteose dos ideais suburbanos de 1950 –
conveniência, funcionalidade, auto-suficiência, proximidade
familiar – e a destilação do pesadelo suburbano: claustrofobia,
falta de privacidade, solidão, isolamento”2.
Todavia, como se pode observar no filme, tornou-se não só motivo de
acesa discussão, de inimizade, de distúrbio no seio da comunidade
humana, como, também, o centro de uma das cenas mais chocantes, até
então, da história do cinema, a destruição do conceito de
família, da célula, do núcleo, por um lado e, por outro,
ironicamente, o refúgio de Ben, aquele que tão fervorosamente
defendia o rés do chão como espaço de luta.
A cultura dos anos 50 é um dos elementos do
“passado bárbaro” revisitado por Romero, igualmente no modo como
o realizador desconstrói a responsabilidade e o dever de reposição
da normalidade das instituições de poder. O governo, o exército e
o grande dispositivo de saber da ciência – outros elementos da
micro-estrutura, bem como espinha dorsal da segurança e da ordem da
cultura desse tempo pré-apocalíptico em suspensão – vêem-se
incapazes de justificar e resolver a causa de terror, incapazes de
identificar o mal, pelo que a sua ineficácia segue, aqui, as linhas
revolucionárias dos anos 60, que reconheciam nessas instituições,
não só os formadores de uma normalidade, os criadores de um medo e
de uma sensação de entorpecimento generalizado, como também os
encobridores e controladores de informação relevante, aqueles que
mascaram a realidade furtando-a ao resto da população, entendidos,
por isso mesmo, como perigosos (pelas suas acções) e a desconfiar.
Mas se a cultura do medo é retratada pela ineficácia e a
irresponsabilidade dos poderes (no sentido de impossibilidade de dar
resposta, bem como, de acordo com a justificação da origem do
aparecimento dos zombies por Romero, o de uma sonda vinda de Vénus
caída na Terra e cuja radiação faz
reviver os mortos, ou seja, o tema de
«uma experiência que deu para o torto» – que, no nosso entender,
retira força à ideia de um acontecimento sem razão própria à
lógica do pesadelo, «o zombie é sem porquê» – ou seja ainda, a
causa é motivada pela transgressão dos poderes institucionais), já
os anos 60 são confrontados pelo modo como os media divulgam
a informação – espécie de peões do governo, bonecos de
ventríloquos por cuja boca passa o que deve ser dito oficialmente –
ou como perseguem a notícia e o pelotão da morte, semelhante, no
filme, às coberturas durante a Guerra do Vietname. Esse é um dos
aspectos fílmicos inseparável do seu tempo, realizado com um
propósito político intencional. Por um lado, o «pelotão da
morte», uma mescla de forças da ordem e população, é todo ele
constituído por homens brancos, o que de imediato nos faz recordar
as associações de linchamento ocasionais3
ou organizadas, tais como o Ku Klux Klan, violentamente retratado na
película com a morte de Ben, o herói negro, tomado ou não por
zombie (embora nos pareça que não) e tratado como tal, repetindo os
gestos reconhecidos dos linchamentos; por outro lado, tal como Hervey
evidencia (e pedimos, desde já, as nossas desculpas pela extensão
da citação que se segue), este pelotão e a sua cobertura
mimetizam, de certo modo, quer as acções dos soldados na frente
asiática, quer as «reacções» dos conservadores na rectaguarda
nacional, os que ficaram para trás:
“É significativo que observemos duas vezes o pelotão,
primeiro no interior do distractivo plano-dentro-do-plano, e depois
off the record. A
primeira sequência considera especificamente a televisão, e mais
especificamente à luz da cobertura televisiva da Guerra do Vietname.
A fórmula insiste na conexão: 'Search and Destroy', ou 'S&D',
foi uma estratégia famosamente cunhada pelo General Westmoreland,
correspondendo a uma inserção de forças terrestres numa área
hostil para a 'limpar' e rapidamente se retirar. Ao longo de 1967,
enquanto Night era
feito, estas operações foram massivamente televisionadas,
geralmente em montagens pré-gravadas como esta, seguindo uma equipa
durante um dia de trabalho. Por vezes os repórteres entrevistavam o
líder do pelotão; outras vezes os próprios líderes narravam: de
um ou de outro modo, normalmente os segmentos reproduziam
acriticamente as linhas de comando de campo. Cenas angustiantes eram
minimizadas, e o padrão focava-se desapaixonadamente no
profissionalismo das tropas e na perícia dos equipamentos, a
logística de 'limpeza' da área. Até as aldeias a arder faziam
parte do trabalho, nenhuma vingança. A linguagem eufemística dos
jornalistas purgava-se de implicações morais; alguma era relaxada o
suficiente para vestir as roupas do pelotão do Night:
'melhor caça hoje' (…).
Mas esta cena
liga-se tanto mais poderosamente com a
guerra em casa. Esses voluntários de espingarda em punho parecem-se
com o estereótipo do conservador retirado, os naturais aliados da
polícia. Com os seus uniformes, carrinhas coléricas, cães de
rastro, espingardas, parolos e a Guarda Nacional à esquina, o
pelotão é o Porco, o braço armado do Establishment.
A cavalaria americana está a chegar, tal como fizeram na
Universidade de Columbia, na Convenção Democrática, Kent State, My
Lai”.4
Assim, Romero procurou tocar criticamente não só uma certa
mentalidade, ou comportamento típico, bastamente enraizado na
cultura americana – talvez mais da América profunda –,
peremptoriamente associado ao racismo, como retratar as acções
macabras, insensíveis dos massacres em tempo de guerra, como também
a encapuzada parcialidade dos media, cujas verdades são
manipuladas pelo próprio Establishment. Pelo que devemos
perguntar, finalmente, na linha do tema do presente face a um passado
bárbaro, quem representa o quê em Night of the Living Dead?
Qual é o verdadeiro mal presente no filme? Parece-nos, neste
dualismo, que o passado deve ser tomado, exactamente, pelo
Establishment, a cultura americana,
o caminho que estava a tomar, a sua normalização e ordem, enquanto
o presente é senão outro que o zombie. Eis que Romero introduz uma
nova inversão, o de um horrífico «mal» destruindo o «bem» da
ordem e que proporcionará a renovação do mundo; porque o mal,
afinal, já está instalado no coração de cada homem e o bem está
tão encoberto quanto a verdade emitida pelos media, o mal
apresenta-se, justamente, na impossibilidade de qualquer comunicação
entre os humanos, na sua impossibilidade de cooperação para um bem
comum minada pelo ego de cada um. O mal encontra-se, também, nessa
malograda solidão intransponível no seio da comunidade, parece
Romero dizer, uma pervertida imagem do célebre poema de John Donne,
No man is an island, enquanto a massa zombie é toda ela um
continente em movimento. Porém, paradoxalmente, o zombie – na
realidade, enquanto morto que volta – é um passado que retorna
fazendo-se presente com o seu retorno, empurrando, consequentemente,
o presente estabelecido para o passado, tornando-o o bloco barbárico
a ser derruído; um passado positivamente futuro lançado para o
presente (as sequelas mostram bem que o fim dos zombies no Night
foi um falso fim), que engolfa, come, enterra o presente tornado mal.
Talvez esse retorno nada mais proponha
que a suspensão do tempo, que a mudança só poderá ser possível
por essa suspensão, pela completa destruição do tempo presente
introduzindo todo um tempo outro, o do morto-vivo, o da comunidade
rediviva, renascida; um tempo fora do tempo, porque já não é nem
pode ser passado – está aqui, no tempo dos vivos – e que,
contudo, pode ser morto (basta destruir, por qualquer processo, o
cérebro, embora, estranhamente, a decomposição do seu corpo pareça
igualmente suspensa), desaparecer, desvanecer-se; um estranho e
enigmático tempo movido pela gula e o ócio. Por nos parecer ser
essa a proposta romeriana, o surgimento de uma comunidade de
renascidos que suspende o tempo, faremos também nós uma suspensão.
Passaremos a uma análise do zombie via os gloriosos renascidos no
seio de Deus e, de seguida, recuperamos a tempo de terminar o estudo
por uma leitura comparatista desses dois redivivos.
1Vd.
ibid., 2008: 34-37. Traduzimos: “(...) many of the same
ingredients for its young viewers: gore, cynicism, irony, wit,
relevance”. Não traduzimos os termos gore e wit,
uma vez que, por um lado, o primeiro é, de certa forma,
intraduzível e bastamente conhecido do público do terror (há já
um subgénero) e, por outro, wit, (um conceito que surge do
primeiro romantismo, a escola de Jena; e por eles problematizado,
bem como pelos seus “filhos” e filósofos da estética), embora
podendo ser mudado para português como perspicácia, inteligência,
humor, é, bem na verdade, todas essas opções de tradução, pelo
que igualmente intraduzível.
2Ibid.:
70-71. Traduzimos: “With its neatly rowed packaged food, TV and
other reational (sic), the family shelter was both the
apotheosis of 1950s suburban ideals – convenience, functionality,
self-containment, familial closeness – and the distillation of the
suburban nightmare: claustrophobia, lack of privacy, loneliness,
isolation”.
3Vd.
imagem do linchamento do negro Will Brown in ibid.:
115.
4Ibid.:
97 e 109. Traduzimos: “It's significant that we observe the posse
twice, first within the television's distracting
frame-within-a-frame, and later off the record. This first sequence
bears consideration specifically as television, and more
specifically in the light of televised Vietnam War coverage. The
wording insists on the connection: 'Search and Destroy', or 'S&D',
was famously coined for General Westmoreland's Vietnam strategy,
whereby ground forces were inserted to 'clear' a hostile area and
then immediately withdrawn. Through 1967, as Night
was made, these operations were heavily covered on television,
usually in pre-recorded montages like this one, following a team
though a day's work. Sometimes reporters interviewed squad leaders;
sometimes the leaders themselves narrated: either way, the segments
usually reproduced field command's party line uncritically.
Distressing footage was minimised, and the patter focused
dispassionately on the troop's professionalism and the hardware
expertise, the logistics of 'mopping up' the area. Even burning
villages was just part of the job, nothing vindictive. The
reporter's euphemistic language was purged of moral implications;
some was sporty enough to suit the clothes of Night's
posse: 'better hunting today'. (…) But this scene connects just as
powerfully with the war at home. Those rifle-toting volunteers look
like stereotypical backwater conservatives, the police's natural
allies. With their uniforms, paddy wagons, sniffer dogs, rifles,
billies and the National Guard waiting in the wings, the posse is
the Pigs, the Establishment's strong-arm men. The American cavalry
is riding in, like they did at Columbia University, the Democratic
Convention, Kent State, My Lai”.
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