terça-feira, 17 de janeiro de 2012

O Corpo Inglorioso. Uma leitura sobre Night of the Living Dead de George Romero e o Zombie (pt.2)




A noite revoltada: o mal está no coração do homem.
Comecemos pela micro-estrutura, a qual alimenta, de certa forma, a macro. Um dos seus signos de corte com o passado com Hollywood apresenta-se pela introdução de uma certa ironia e humor negro que provêm da forte influência de uma banda desenhada popular nos anos 50, a Tales from the Crypt da DC comics, de onde Romero recolheu “muitos dos mesmos ingredientes para os seus jovens espectadores: gore, cinismo, ironia, wit, relevância”1, disseminada ao longo do filme e maioritariamente concentrada na figura do zombie – embora o primeiro sinal de recusa surja ainda nos primeiros minutos do filme, quando John, o irmão da suposta heroína Barbara, mimetiza comicamente o Frankenstein de Boris Karloff, enquanto ridiculariza as crenças religiosas da irmã, acabando por ser morto por um morto-vivo. Igualmente de relevar a exploração da lógica do pesadelo, presente na fuga de Barbara do primeiro zombie – uma fuga do perigo infinita, impossível, estranha, já que o sujeito corre desenfreadamente, a uma velocidade estonteante, enquanto o seu opositor no seu andar lento e desajeitado, francamente incapaz de alguma vez alcançar o fugitivo, mantém a distância, ou incrivelmente chega a tocar a quem quer mal – ou os recorrentes paradoxos temporais e climáticos – ora estamos na Primavera como, logo a seguir, é Outono, ou, mais flagrantemente, dia na entrevista em directo na televisão e, pela janela, o breu da noite. Não nos podemos esquecer dos heróis, tão importantes para o género. Ben é negro, franco, directo, protector, razoável, forte, tem todas as qualidades para a sua elevação a herói, porém, nem tem a possibilidade de criar uma relação amorosa com a protagonista, nem as suas acções e intenções são completamente “puras”, nem a sua heroicidade o isenta do fatal fim, o da sua morte, que a todos, sem excepção, cabe (veremos mais à frente estes dois pontos mais pormenorizadamente); também à figura feminina passível de se tornar heroína lhe é cortada cerce a passagem, primeiro é acometida pela histeria, de seguida uma crescente catatonia, até que, quando desperta, pronta a vestir o seu papel de heroína tão esperado pelo espectador, é ironicamente morta pelo seu próprio irmão. Ora, como antes dissemos, a família e o amor igualmente são desvirtuados. Não se trata somente da morte de Barbara pelas mãos do seu morto irmão, mas também a implosão do núcleo Cooper pela boca do único rebento, Karen, comendo Pai e Mãe, completa inversão da imagem de Saturno. Se a família implode, se auto-fagia, também o amor segue a par. O jovem casal de corajosos enamorados, devotos um ao outro, morre acidentalmente precisamente pelo que os unia, a (e)terna devoção. Concomitante com estas falências encontra-se também a criminalização e a fraqueza das forças de poder, do Estado, do exército, da polícia (não tão cabal em Night of the Living Dead como nos filmes seguintes; contudo, neste filme, apoiada pela população, formando um heteróclito pelotão composto somente de homens brancos, ponto a que voltaremos mais adiante), ou da ciência, incapaz de responder ao flagelo nacional – há que sublinhar que mais do que uma crítica ao mundo, Romero pretende afectar a América. Portanto, família, amor, devoção, o papel do herói, as forças normalizadoras, tudo aquilo que competia a Hollywood defender se vê destruído. E o que, da micro-estrutura do terror e da indústria, é pervertido, indica, por seu lado, o que da macro-estrutura deve ser criticado. Assim, antes de abordarmos a desconcertante figura do zombie, outro elemento da micro-estrutura, o monstro, passemos rápida e brevemente ao plano geral.
O filme não pode ser desligado do seu tempo, os anos 60. As radicais transformações pela qual a América passava, elas próprias reflectindo essa batalha de um presente com um passado, o da cultura alimentada a medo pela Guerra Fria, a invasão comunista e a radioactividade da Bomba Atómica, são um motor desencadeante da vontade de realizar Night of the Living Dead. Não basta referir que, nascido em 1940, Romero atravessou a sua infância e adolescência mergulhado numa atmosfera de Apocalipse suspenso, mas bem que o marcou indelevelmente; disso são exemplo a importância das janelas barricadas e a louca discussão em torno da cave, ambas símbolo de perigo e da segurança contra a ameaça nuclear. A cave, particularmente, “com a sua arrumação aprumada de comida, TV e outras semelhantes facilidades” afirmava e impulsionava os valores familiares, uma vez que “o abrigo familiar era simultaneamente a apoteose dos ideais suburbanos de 1950 – conveniência, funcionalidade, auto-suficiência, proximidade familiar – e a destilação do pesadelo suburbano: claustrofobia, falta de privacidade, solidão, isolamento”2. Todavia, como se pode observar no filme, tornou-se não só motivo de acesa discussão, de inimizade, de distúrbio no seio da comunidade humana, como, também, o centro de uma das cenas mais chocantes, até então, da história do cinema, a destruição do conceito de família, da célula, do núcleo, por um lado e, por outro, ironicamente, o refúgio de Ben, aquele que tão fervorosamente defendia o rés do chão como espaço de luta.
A cultura dos anos 50 é um dos elementos do “passado bárbaro” revisitado por Romero, igualmente no modo como o realizador desconstrói a responsabilidade e o dever de reposição da normalidade das instituições de poder. O governo, o exército e o grande dispositivo de saber da ciência – outros elementos da micro-estrutura, bem como espinha dorsal da segurança e da ordem da cultura desse tempo pré-apocalíptico em suspensão – vêem-se incapazes de justificar e resolver a causa de terror, incapazes de identificar o mal, pelo que a sua ineficácia segue, aqui, as linhas revolucionárias dos anos 60, que reconheciam nessas instituições, não só os formadores de uma normalidade, os criadores de um medo e de uma sensação de entorpecimento generalizado, como também os encobridores e controladores de informação relevante, aqueles que mascaram a realidade furtando-a ao resto da população, entendidos, por isso mesmo, como perigosos (pelas suas acções) e a desconfiar. Mas se a cultura do medo é retratada pela ineficácia e a irresponsabilidade dos poderes (no sentido de impossibilidade de dar resposta, bem como, de acordo com a justificação da origem do aparecimento dos zombies por Romero, o de uma sonda vinda de Vénus caída na Terra e cuja radiação faz reviver os mortos, ou seja, o tema de «uma experiência que deu para o torto» – que, no nosso entender, retira força à ideia de um acontecimento sem razão própria à lógica do pesadelo, «o zombie é sem porquê» – ou seja ainda, a causa é motivada pela transgressão dos poderes institucionais), já os anos 60 são confrontados pelo modo como os media divulgam a informação – espécie de peões do governo, bonecos de ventríloquos por cuja boca passa o que deve ser dito oficialmente – ou como perseguem a notícia e o pelotão da morte, semelhante, no filme, às coberturas durante a Guerra do Vietname. Esse é um dos aspectos fílmicos inseparável do seu tempo, realizado com um propósito político intencional. Por um lado, o «pelotão da morte», uma mescla de forças da ordem e população, é todo ele constituído por homens brancos, o que de imediato nos faz recordar as associações de linchamento ocasionais3 ou organizadas, tais como o Ku Klux Klan, violentamente retratado na película com a morte de Ben, o herói negro, tomado ou não por zombie (embora nos pareça que não) e tratado como tal, repetindo os gestos reconhecidos dos linchamentos; por outro lado, tal como Hervey evidencia (e pedimos, desde já, as nossas desculpas pela extensão da citação que se segue), este pelotão e a sua cobertura mimetizam, de certo modo, quer as acções dos soldados na frente asiática, quer as «reacções» dos conservadores na rectaguarda nacional, os que ficaram para trás:

É significativo que observemos duas vezes o pelotão, primeiro no interior do distractivo plano-dentro-do-plano, e depois off the record. A primeira sequência considera especificamente a televisão, e mais especificamente à luz da cobertura televisiva da Guerra do Vietname. A fórmula insiste na conexão: 'Search and Destroy', ou 'S&D', foi uma estratégia famosamente cunhada pelo General Westmoreland, correspondendo a uma inserção de forças terrestres numa área hostil para a 'limpar' e rapidamente se retirar. Ao longo de 1967, enquanto Night era feito, estas operações foram massivamente televisionadas, geralmente em montagens pré-gravadas como esta, seguindo uma equipa durante um dia de trabalho. Por vezes os repórteres entrevistavam o líder do pelotão; outras vezes os próprios líderes narravam: de um ou de outro modo, normalmente os segmentos reproduziam acriticamente as linhas de comando de campo. Cenas angustiantes eram minimizadas, e o padrão focava-se desapaixonadamente no profissionalismo das tropas e na perícia dos equipamentos, a logística de 'limpeza' da área. Até as aldeias a arder faziam parte do trabalho, nenhuma vingança. A linguagem eufemística dos jornalistas purgava-se de implicações morais; alguma era relaxada o suficiente para vestir as roupas do pelotão do Night: 'melhor caça hoje' (…).
Mas esta cena liga-se tanto mais poderosamente com a guerra em casa. Esses voluntários de espingarda em punho parecem-se com o estereótipo do conservador retirado, os naturais aliados da polícia. Com os seus uniformes, carrinhas coléricas, cães de rastro, espingardas, parolos e a Guarda Nacional à esquina, o pelotão é o Porco, o braço armado do Establishment. A cavalaria americana está a chegar, tal como fizeram na Universidade de Columbia, na Convenção Democrática, Kent State, My Lai”.4

Assim, Romero procurou tocar criticamente não só uma certa mentalidade, ou comportamento típico, bastamente enraizado na cultura americana – talvez mais da América profunda –, peremptoriamente associado ao racismo, como retratar as acções macabras, insensíveis dos massacres em tempo de guerra, como também a encapuzada parcialidade dos media, cujas verdades são manipuladas pelo próprio Establishment. Pelo que devemos perguntar, finalmente, na linha do tema do presente face a um passado bárbaro, quem representa o quê em Night of the Living Dead? Qual é o verdadeiro mal presente no filme? Parece-nos, neste dualismo, que o passado deve ser tomado, exactamente, pelo Establishment, a cultura americana, o caminho que estava a tomar, a sua normalização e ordem, enquanto o presente é senão outro que o zombie. Eis que Romero introduz uma nova inversão, o de um horrífico «mal» destruindo o «bem» da ordem e que proporcionará a renovação do mundo; porque o mal, afinal, já está instalado no coração de cada homem e o bem está tão encoberto quanto a verdade emitida pelos media, o mal apresenta-se, justamente, na impossibilidade de qualquer comunicação entre os humanos, na sua impossibilidade de cooperação para um bem comum minada pelo ego de cada um. O mal encontra-se, também, nessa malograda solidão intransponível no seio da comunidade, parece Romero dizer, uma pervertida imagem do célebre poema de John Donne, No man is an island, enquanto a massa zombie é toda ela um continente em movimento. Porém, paradoxalmente, o zombie – na realidade, enquanto morto que volta – é um passado que retorna fazendo-se presente com o seu retorno, empurrando, consequentemente, o presente estabelecido para o passado, tornando-o o bloco barbárico a ser derruído; um passado positivamente futuro lançado para o presente (as sequelas mostram bem que o fim dos zombies no Night foi um falso fim), que engolfa, come, enterra o presente tornado mal. Talvez esse retorno nada mais proponha que a suspensão do tempo, que a mudança só poderá ser possível por essa suspensão, pela completa destruição do tempo presente introduzindo todo um tempo outro, o do morto-vivo, o da comunidade rediviva, renascida; um tempo fora do tempo, porque já não é nem pode ser passado – está aqui, no tempo dos vivos – e que, contudo, pode ser morto (basta destruir, por qualquer processo, o cérebro, embora, estranhamente, a decomposição do seu corpo pareça igualmente suspensa), desaparecer, desvanecer-se; um estranho e enigmático tempo movido pela gula e o ócio. Por nos parecer ser essa a proposta romeriana, o surgimento de uma comunidade de renascidos que suspende o tempo, faremos também nós uma suspensão. Passaremos a uma análise do zombie via os gloriosos renascidos no seio de Deus e, de seguida, recuperamos a tempo de terminar o estudo por uma leitura comparatista desses dois redivivos.

1Vd. ibid., 2008: 34-37. Traduzimos: “(...) many of the same ingredients for its young viewers: gore, cynicism, irony, wit, relevance”. Não traduzimos os termos gore e wit, uma vez que, por um lado, o primeiro é, de certa forma, intraduzível e bastamente conhecido do público do terror (há já um subgénero) e, por outro, wit, (um conceito que surge do primeiro romantismo, a escola de Jena; e por eles problematizado, bem como pelos seus “filhos” e filósofos da estética), embora podendo ser mudado para português como perspicácia, inteligência, humor, é, bem na verdade, todas essas opções de tradução, pelo que igualmente intraduzível.
2Ibid.: 70-71. Traduzimos: “With its neatly rowed packaged food, TV and other reational (sic), the family shelter was both the apotheosis of 1950s suburban ideals – convenience, functionality, self-containment, familial closeness – and the distillation of the suburban nightmare: claustrophobia, lack of privacy, loneliness, isolation”.
3Vd. imagem do linchamento do negro Will Brown in ibid.: 115.
4Ibid.: 97 e 109. Traduzimos: “It's significant that we observe the posse twice, first within the television's distracting frame-within-a-frame, and later off the record. This first sequence bears consideration specifically as television, and more specifically in the light of televised Vietnam War coverage. The wording insists on the connection: 'Search and Destroy', or 'S&D', was famously coined for General Westmoreland's Vietnam strategy, whereby ground forces were inserted to 'clear' a hostile area and then immediately withdrawn. Through 1967, as Night was made, these operations were heavily covered on television, usually in pre-recorded montages like this one, following a team though a day's work. Sometimes reporters interviewed squad leaders; sometimes the leaders themselves narrated: either way, the segments usually reproduced field command's party line uncritically. Distressing footage was minimised, and the patter focused dispassionately on the troop's professionalism and the hardware expertise, the logistics of 'mopping up' the area. Even burning villages was just part of the job, nothing vindictive. The reporter's euphemistic language was purged of moral implications; some was sporty enough to suit the clothes of Night's posse: 'better hunting today'. (…) But this scene connects just as powerfully with the war at home. Those rifle-toting volunteers look like stereotypical backwater conservatives, the police's natural allies. With their uniforms, paddy wagons, sniffer dogs, rifles, billies and the National Guard waiting in the wings, the posse is the Pigs, the Establishment's strong-arm men. The American cavalry is riding in, like they did at Columbia University, the Democratic Convention, Kent State, My Lai”.

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