terça-feira, 17 de janeiro de 2012

O Corpo Inglorioso. Uma leitura sobre Night of the Living Dead de George Romero e o Zombie (pt. 4)




O negro da luz: considerações sobre o zombie.
Estes corpos tornam-se enigmáticos e inquietantes; e se perpetuam as funções da vida vegetativa, se se alimentam, é somente por uma “espécie de acto gratuito ou de snobismo sublime”1. Será possível, agora, aproximarmos este corpo glorioso, que nada mais será que “uma restauração do corpo edénico, arquétipo da natureza humana não corrompida”2, ao corpo do morto-vivo, do zombie? Será possível arriscar a afirmação de que o zombie, embora não sendo glorioso, revela bem a corrompida e, porventura, verdadeira imagem do homem?
Recomecemos, portanto e uma vez mais, por demonstrar resumidamente como Romero destrói a micro-estrutura do horror com a recuperação do zombie. A personagem não é nova, outros filmes houve em que o monstro zombie já deambulava; mas, se anteriormente era tido por um escravo às ordens de uma outra personagem – essa sim simbolizando o mal, ou o Outro –, Romero lança-o para o ecrã como um Prometeu desagrilhoado, vingativo, desafecto de desejo e movido por uma única pulsão, tragar a vida, abismá-la na sua morte-viva. Na verdade nem monstros são, não pertencem a qualquer uma das classes, a teratológica ou fabulosa; porém, tomando-os como tal, encontram-se no mais baixo grau, a classe baixa, pobre, longe da nobreza e do romantismo (no sentido mais popular e lacrimal do termo) dos vampiros, dos lobisomens, dos criados experimentalmente, como o Frankenstein, por exemplo, conquanto partilhem alguns traços, tal como o contágio vampiresco, embora isento de paixão ou erotismo do beijo canino. São seres brutos, mancos de inteligência, de movimento, agilidade, isentos de qualquer poder sobrenatural ou traço de humanidade, à excepção da sua imagem, ou melhor, exactamente por serem demasiado humanos são mais aterradores que qualquer outro. A sua morte, também ela, exclui-se de qualquer magia, truque, gesto sobrenatural; bem pelo contrário, é violenta, guiada talvez pelo nojo, pelo ódio, a desrazão. O par que daqui decorre, a morte por eles cometida – o canibalismo – e a morte a eles infligida, tem certa implicação moral, de acordo com a leitura de Paffenroth. Por um lado, diz-nos o intérprete, “haverá” para o canibalismo do zombie “um pormenor simbólico sobre a natureza humana” de certa ambiguidade:

ou os humanos somente são irónica e auto-destrutivamente violentos uns para os outros e de todo em relação a outros animais, praticamente em contraposição às outras espécies 'naturais', cuja violência assassina é geralmente reprimida quanto aos membros da sua própria espécie, enquanto a violência humana deflagra virulentamente em torno de outros humanos; ou os humanos são tão violentos que a sua violência se derrama indiscriminadamente sobre todas as espécies, mesmo se a sua louca preferência seja devorar outros humanos”3

enquanto, por outro lado, o modo pelo qual o zombie tem de ser morto potencia o comum gesto da «natureza» humana – matar o seu estranho/estrangeiro próximo –, pela própria razão da sua semelhança, da sua mesmidade, por assim dizer, pelo que a luta pela sobrevivência da vida humana passa, obrigatoriamente, pelo cancelamento da razão e da humanidade do homem, ou seja e ainda seguindo Paffenroth, “a perturbante implicação de que mesmo que sejamos conscientes e os zombies não o são, a nossa consciência pouco faz para nos tornar 'melhores', mesmo se nos torne epistemicamente diferentes ou mais complexos”4. No seu geral, o zombie, proposto por Romero, é um exagero do ser humano, um retorno de uma forma-homem no seu estado mais selvagem e primitiva, desumanizada, desarrazoada, incontrolável, violenta, capaz, mesmo antes do contágio e à distância, de revelar, o mais das vezes, o pior do ser humano; será, assim bem, uma imagem perversa do homem. E para terminar a infecção romeriana, há que referir que o zombie não é o Outro como tal, o Outro perturbador da ordem que o monstro recorrentemente tomava o lugar no terror. É certo que ainda aqui o zombie viola a «ordem natural das coisas», particularmente no aspecto de negar ao vivo qualquer trabalho de luto – se um dos seus familiares é mordido ou morto por um morto-vivo, por questão de sobrevivência; ou por ser um morto andando no espaço dos vivos, ou mesmo por não poder, ao contrário de todos os outros organismo vivos, se reproduzir; porém, parece Romero afirmar, segundo a ideia original da sua alegoria, que o Outro, afinal, não vem de fora, encontra-se presente mesmo antes do nascimento de qualquer morto-vivo, o Outro perturbador é a normalidade instalada, o sistema, o Establishment, toda a estrutura sob a qual assenta a sociedade humana, o american way of life. Perguntemo-nos, como Slavoj Žižek, porque voltam os mortos? Eles retornam não para desordenar o natural, pelo contrário, voltam porque já um dos processos de ordenação do natural foi perturbado; o seu regresso, afirma o filósofo apoiando-se em Lacan, “é um signo de uma perturbação no ritual simbólico [o enterro, o luto], no processo de simbolização ; os mortos voltam como cobradores de uma qualquer dívida simbólica por pagar. (…) materializa uma certa dívida simbólica que persiste para lá da expiração física”5. Razão pela qual o zombie pode tomar lugar na questão política criticada por Romero: o morto-vivo não é, de todo, a maioria silenciosa que apoiou Nixon – essa é ainda a velha sociedade – mas a personificação de uma massa revolucionária radical que vem cobrar a promessa não cumprida de liberdade, os corpos de uma revolução macabra (explorada ainda mais em Land of the Dead), cujo propósito parece ser nada mais que o fim do rosto humano como até então se conheceu – se os mortos-vivos, tal como têm sido apresentados por Romero e outros realizadores, alguma vez conseguissem cumprir a sua promessa revolucionária, teríamos um estranho mundo de deambulantes corpos mergulhados, ou suspensos, num eterno ócio.

1Ibid.
22011: 32.
3PAFFENROTH, 2006: 6. Traduzimos: “(...) there may be a symbolic point about human nature (…): either humans are ironically and self-destructively only violent to one another and not towards other animals, in contradistinction to praticcally every other 'natural' species, whose murderous violence is usually curbed around members of their own kind, while human violence flares up most virulently around other humans; or humans are so violent that their violence indiscriminately spills over onto all species, even if their mad preference is to devour other humans”. Nesta ambiguidade o autor explora, também, um dos motivos do zombie nunca atacar outros animais ou membros da sua legião, ao contrário, obviamente, do homem, elucidando, pois, que o canibalismo funciona bem como símbolo da própria crueldade humana contra si própria, mais do que a estrita forma do zombie matar.
4Ibid.: 11. Traduzimos: “(...) the disturbing implication that even if we are conscious and the zombies are not, our consciousness does little to make us 'better', even if it makes us epistemically different or more complex”.
5ŽIŽEK, 1992: 23. Traduzimos: “(...) is a sign of a disturbance in the symbolic rite, in the process of symbolization; the dead return as collectors of some unpaid symbolic debt. (…) materializes a certain symbolic debt persisting beyond physical expiration”.

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