O
negro da luz: considerações sobre o zombie.
Estes corpos tornam-se enigmáticos e inquietantes; e se perpetuam as
funções da vida vegetativa, se se alimentam, é somente por uma
“espécie de acto gratuito ou de snobismo sublime”1.
Será possível, agora, aproximarmos este corpo glorioso, que nada
mais será que “uma restauração do corpo edénico, arquétipo da
natureza humana não corrompida”2,
ao corpo do morto-vivo, do zombie? Será possível arriscar a
afirmação de que o zombie, embora não sendo glorioso, revela bem a
corrompida e, porventura, verdadeira imagem do homem?
Recomecemos, portanto e uma vez mais, por demonstrar resumidamente
como Romero destrói a micro-estrutura do horror com a recuperação
do zombie. A personagem não é nova, outros filmes houve em que o
monstro zombie já deambulava; mas, se anteriormente era tido por um
escravo às ordens de uma outra personagem – essa sim simbolizando
o mal, ou o Outro –, Romero lança-o para o ecrã como um Prometeu
desagrilhoado, vingativo, desafecto de desejo e movido por uma única
pulsão, tragar a vida, abismá-la na sua morte-viva. Na verdade nem
monstros são, não pertencem a qualquer uma das classes, a
teratológica ou fabulosa; porém, tomando-os como tal, encontram-se
no mais baixo grau, a classe baixa, pobre, longe da nobreza e do
romantismo (no sentido mais popular e lacrimal do termo) dos
vampiros, dos lobisomens, dos criados experimentalmente, como o
Frankenstein, por exemplo, conquanto partilhem alguns traços, tal
como o contágio vampiresco, embora isento de paixão ou erotismo do
beijo canino. São seres brutos, mancos de inteligência, de
movimento, agilidade, isentos de qualquer poder sobrenatural ou traço
de humanidade, à excepção da sua imagem, ou melhor, exactamente
por serem demasiado humanos são mais aterradores que qualquer outro.
A sua morte, também ela, exclui-se de qualquer magia, truque, gesto
sobrenatural; bem pelo contrário, é violenta, guiada talvez pelo
nojo, pelo ódio, a desrazão. O par que daqui decorre, a morte por
eles cometida – o canibalismo – e a morte a eles infligida, tem
certa implicação moral, de acordo com a leitura de Paffenroth. Por
um lado, diz-nos o intérprete, “haverá” para o canibalismo do
zombie “um pormenor simbólico sobre a natureza humana” de certa
ambiguidade:
“ou os humanos somente são irónica e
auto-destrutivamente violentos uns para os outros e de todo em
relação a outros animais, praticamente em contraposição às
outras espécies 'naturais', cuja violência assassina é geralmente
reprimida quanto aos membros da sua própria espécie, enquanto a
violência humana deflagra virulentamente em torno de outros humanos;
ou os humanos são tão violentos que a sua violência se derrama
indiscriminadamente sobre todas as espécies, mesmo se a sua louca
preferência seja devorar outros humanos”3
enquanto, por outro lado, o modo pelo qual o zombie tem de ser morto
potencia o comum gesto da «natureza» humana – matar o seu
estranho/estrangeiro próximo –, pela própria razão da sua
semelhança, da sua mesmidade, por assim dizer, pelo que a luta pela
sobrevivência da vida humana passa, obrigatoriamente, pelo
cancelamento da razão e da humanidade do homem, ou seja e ainda
seguindo Paffenroth, “a perturbante implicação de que mesmo que
sejamos conscientes e os zombies não o são, a nossa consciência
pouco faz para nos tornar 'melhores', mesmo se nos torne
epistemicamente diferentes ou mais complexos”4.
No seu geral, o zombie, proposto por Romero, é um exagero do ser
humano, um retorno de uma forma-homem no seu estado mais selvagem e
primitiva, desumanizada, desarrazoada, incontrolável, violenta,
capaz, mesmo antes do contágio e à distância, de revelar, o mais
das vezes, o pior do ser humano; será, assim bem, uma imagem
perversa do homem. E para terminar a infecção romeriana, há que
referir que o zombie não é o Outro como tal, o Outro perturbador da
ordem que o monstro recorrentemente tomava o lugar no terror. É
certo que ainda aqui o zombie viola a «ordem natural das coisas»,
particularmente no aspecto de negar ao vivo qualquer trabalho de luto
– se um dos seus familiares é mordido ou morto por um morto-vivo,
por questão de sobrevivência; ou por ser um morto andando no espaço
dos vivos, ou mesmo por não poder, ao contrário de todos os outros
organismo vivos, se reproduzir; porém, parece Romero afirmar,
segundo a ideia original da sua alegoria, que o Outro, afinal, não
vem de fora, encontra-se presente mesmo antes do nascimento de
qualquer morto-vivo, o Outro perturbador é a normalidade instalada,
o sistema, o Establishment, toda a estrutura sob a qual
assenta a sociedade humana, o american way of life.
Perguntemo-nos, como Slavoj Žižek, porque voltam os mortos? Eles
retornam não para desordenar o natural, pelo contrário, voltam
porque já um dos processos de ordenação do natural foi perturbado;
o seu regresso, afirma o filósofo apoiando-se em Lacan, “é um
signo de uma perturbação no ritual simbólico [o enterro, o luto],
no processo de simbolização ; os mortos voltam como cobradores de
uma qualquer dívida simbólica por pagar. (…) materializa uma
certa dívida simbólica que persiste para lá da expiração
física”5.
Razão pela qual o zombie pode tomar lugar na questão política
criticada por Romero: o morto-vivo não é, de todo, a maioria
silenciosa que apoiou Nixon – essa é ainda a velha sociedade –
mas a personificação de uma massa revolucionária radical que vem
cobrar a promessa não cumprida de liberdade, os corpos de uma
revolução macabra (explorada ainda mais em Land of the Dead),
cujo propósito parece ser nada mais que o fim do rosto humano como
até então se conheceu – se os mortos-vivos, tal como têm sido
apresentados por Romero e outros realizadores, alguma vez
conseguissem cumprir a sua promessa revolucionária, teríamos um
estranho mundo de deambulantes corpos mergulhados, ou suspensos, num
eterno ócio.
1Ibid.
22011:
32.
3PAFFENROTH,
2006: 6. Traduzimos: “(...) there may be a symbolic point about
human nature (…): either humans are ironically and
self-destructively only violent to one another and not towards other
animals, in contradistinction to praticcally every other 'natural'
species, whose murderous violence is usually curbed around members
of their own kind, while human violence flares up most virulently
around other humans; or humans are so violent that their violence
indiscriminately spills over onto all species, even if their mad
preference is to devour other humans”. Nesta ambiguidade o autor
explora, também, um dos motivos do zombie nunca atacar outros
animais ou membros da sua legião, ao contrário, obviamente, do
homem, elucidando, pois, que o canibalismo funciona bem como símbolo
da própria crueldade humana contra si própria, mais do que a
estrita forma do zombie matar.
4Ibid.:
11. Traduzimos: “(...) the disturbing implication that even if we
are conscious and the zombies are not, our consciousness does little
to make us 'better', even if it makes us epistemically different or
more complex”.
5ŽIŽEK,
1992: 23. Traduzimos: “(...) is a sign of a disturbance in the
symbolic rite, in the process of symbolization; the dead return as
collectors of some unpaid symbolic debt. (…) materializes a
certain symbolic debt persisting beyond physical expiration”.
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