“I
was afraid I'd eat your brain, 'Cause I'm evil”
The
National
A
inovação de uma noite: de uma alegoria política ao prazer do
terror.
Para muitos críticos do cinema a primeira longa-metragem, no
circuito comercial, de George Romero, Night of the Living Dead,
abre o género do terror a uma nova época, da sua modernidade, ou
mesmo da sua pós-modernidade1.
Tendo sido, inicialmente, pensada pelo realizador como uma alegoria,
centrada exclusivamente nos Estados Unidos da América, Romero
procurava traçar o diorama ou o quadro geral de um mal endémico,
apresentando um “paralelismo entre aquilo em
que o homem se está a tornar e a ideia de que as pessoas operam
segundo vários níveis de insanidade apenas visíveis a si mesmo”2.
Contudo, o filme rapidamente foi-se modificando aquando e durante a
sua gravação; e é hoje entendido pelo seu criador como um
divertimento, mantendo embora a transgressão, reconhecida ainda pelo
mesmo, inscrevendo-os, de imediato, na história do cinema. Mas o que
introduziu Romero, o que transformou
ele?
Até à data da sua projecção, no circuito americano de drive-in
– motivado, acima de tudo, pela descrença da distribuidora no
filme, mais do que pela qualidade
inerente ao mesmo –, o género de terror cinematográfico volteava
em torno da estrutura já clássica estabelecida pelas novelas e
romances góticos e de horror. As características principais,
celebradas pela indústria
de Hollywood, concernem, maioritariamente, o seguinte: a presença de
um Outro (normalmente um monstro) que corrompe a ordem natural e/ou
da normalidade; a edificação da figura de um herói por acidente (é
a desestabilização da normalidade que conduz ao surgimento da
heroicidade, ou instala o sentimento de heroicidade da e na
personagem); a criação de um conjunto ou equipa unidos em prol de
um sentido; o contributo de uma força (a ciência, o exército, o
governo, a razão) em defesa do herói para derrotar a força
desequilibrante; e, duas das suas linhas mais afirmadas, o elogio do
amor (o herói e a princesa) e da família (salvar os seus membros,
vingar a morte de outros, honrar a memória de alguém, etc.). Todas
essas características são corrompidas por Romero, principalmente
com a reabilitação do zombie. Todavia, antes de abordarmos a
figura, vejamos rapidamente outros aspectos da película que a
inscreveram nos arquivos cinematográficos.
A história da criação de Night of the Living Dead está,
toda ela, envolta numa bruma de acasos que proporcionaram o seu
consequente elogio. Os indícios da sua originalidade e do seu
reconhecimento como filme de arte, ao invés de estritamente
comercial, deveram-se tão-somente ao reduzido orçamento. Esse
aspecto, em tudo fundamental, conduziu, quer o realizador, quer toda
a equipa da Image Ten, a um trabalho artesanal e a escolhas de
produção que fizeram as delícias dos críticos, dos amadores e dos
espectadores:
a) selecção da película em preto e branco e com algum grão – o
que, nos anos sessenta, foi entendido como uma decisão de uma séria
intenção do criador em dotar o filme com uma aparência documental,
de naturalidade, de real projectado na tela;
b) uma filmagem sequencial acompanhada por um crescendo de texto –
de modo a obterem mais dinheiro os seus criadores tinham de
prosseguir com os seus contratos de realização de anúncios
televisivos estabelecidos entre a Image Ten e o sector
industrial de Pittsburgh, pelo que a realização foi intermitente,
obrigando assim a ser gravado tal como surge ao espectador; bem como,
à medida do tempo disponível, mais texto foi sendo acrescentado,
razão pela qual diálogos e monólogos aumentam e intensificam no
desenrolar da acção;
c) a selecção dos locais e do elenco – tudo filmado na região,
com pessoas da cidade de Pittsburgh, especialmente o pelotão de caça
aos zombies e os próprios monstros, alguns jornalistas (é de
relevar que o texto do locutor das notícias foi escrito pelo
próprio, finalizando com o seu nome próprio como terminava as suas
emissões noticiosas, bem como certas imagens foram mesmo captadas
por um canal televisivo local, cedidas a George Romero e inseridas na
película), polícias, membros da equipa de rodagem e de produção a
integrarem o elenco;
d) a escolha do “herói” – puro acaso, para Romero, já que
nenhuma vez o texto refere qualquer etnia e o casting ter
decorrido com critérios de “cegueira”, um blind casting,
ou seja, Duane Jones (Ben) foi seleccionado pela sua qualidade
representativa e por ser amigo da equipa da Image Ten.
Mas nem tudo foi motivado pelo orçamento. Certas opções de
realização foram meditadas e premeditadas, especialmente a
destruição da estrutura hollywodesca do género do terror. Tendo
trabalhado de perto com Alfred Hitchcock3,
desgostando do seu método de realização fechado a qualquer
improvisação da parte dos actores, Romero permite no seu plateau
o surgimento do acaso permeado pela liberdade de acção de toda a
equipa, actores e cameramen – não só a rodagem principiava
minutos depois dos actores se porem em movimento, a estabelecer
relações, a executarem acções por sua própria decisão,
igualmente Romero recorre a um processo cubista, no seu entender, de
captação de cenas e de edição de imagens (mais desenvolvido nas
suas criações posteriores, quer as sequelas, quer nas suas outras
obras) – o que lhe possibilitou, para além da cor e do grão da
imagem, alcançar essa mesma sugestão de “naturalidade”, de real
ou aparência documental, ou seja, perturbar a ficção dos filmes de
terror. Porém, mais relevantes são os próprios vírus que
infectaram o género afastando-o do passado. De facto, a questão
colocada por Ben Hervey, na sua profunda análise a Night of the
Living Dead, é de enorme importância: se a película se
inscreve na tradição gótica novelística e fílmica, pela
recuperação da temática de uma “iluminada luta de um presente
face a um passado barbárico”4,
o que é, pois, o passado? Os redivivos ou a estrutura
política, económica e social dos Estados Unidos da América
criticada por George Romero (e, conjuntamente a esta macro-estrutura,
a micro alicerçada em Hollywood)?
1Não
entraremos aqui na discussão mais geral que separa o moderno do
pós-moderno, somente apontamos este seu possível passo no ainda
problemático entre-dois do pensamento e da cultura ocidental.
2WILLIAMS,
2011: 10-11. Traduzimos: “a parallel between what people are
becoming and the idea that people are operating on many levels of
insanity that are only clear to themselves”.
3Vd.
HERVEY, 2008: 49-50. É de referir que muito deste texto deve à
leitura desta obra, pelo que recomendamos fervorosamente o leitor,
que deseje ter uma visão mais cuidada, quer da história, quer dos
temas por nós aqui apontados, a adquirir o livro, bem como o
interessantíssimo estudo de Kim Paffenroth, Gospel of the livind
Dead. George Romero's Visions of Hell on Earth, 2006, ambos
gentilmente cedidos pelo Professor José Manuel Martins.
4Ibid.:
29. Traduzimos: “enlightened present's struggle to overcome a
barbarous past”.
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