terça-feira, 17 de janeiro de 2012

O Corpo Inglorioso. Uma leitura sobre Night of the Living Dead de George Romero e o Zombie (pt.1)




I was afraid I'd eat your brain, 'Cause I'm evil
The National

A inovação de uma noite: de uma alegoria política ao prazer do terror.
Para muitos críticos do cinema a primeira longa-metragem, no circuito comercial, de George Romero, Night of the Living Dead, abre o género do terror a uma nova época, da sua modernidade, ou mesmo da sua pós-modernidade1. Tendo sido, inicialmente, pensada pelo realizador como uma alegoria, centrada exclusivamente nos Estados Unidos da América, Romero procurava traçar o diorama ou o quadro geral de um mal endémico, apresentando um “paralelismo entre aquilo em que o homem se está a tornar e a ideia de que as pessoas operam segundo vários níveis de insanidade apenas visíveis a si mesmo”2. Contudo, o filme rapidamente foi-se modificando aquando e durante a sua gravação; e é hoje entendido pelo seu criador como um divertimento, mantendo embora a transgressão, reconhecida ainda pelo mesmo, inscrevendo-os, de imediato, na história do cinema. Mas o que introduziu Romero, o que transformou ele?
Até à data da sua projecção, no circuito americano de drive-in – motivado, acima de tudo, pela descrença da distribuidora no filme, mais do que pela qualidade inerente ao mesmo –, o género de terror cinematográfico volteava em torno da estrutura já clássica estabelecida pelas novelas e romances góticos e de horror. As características principais, celebradas pela indústria de Hollywood, concernem, maioritariamente, o seguinte: a presença de um Outro (normalmente um monstro) que corrompe a ordem natural e/ou da normalidade; a edificação da figura de um herói por acidente (é a desestabilização da normalidade que conduz ao surgimento da heroicidade, ou instala o sentimento de heroicidade da e na personagem); a criação de um conjunto ou equipa unidos em prol de um sentido; o contributo de uma força (a ciência, o exército, o governo, a razão) em defesa do herói para derrotar a força desequilibrante; e, duas das suas linhas mais afirmadas, o elogio do amor (o herói e a princesa) e da família (salvar os seus membros, vingar a morte de outros, honrar a memória de alguém, etc.). Todas essas características são corrompidas por Romero, principalmente com a reabilitação do zombie. Todavia, antes de abordarmos a figura, vejamos rapidamente outros aspectos da película que a inscreveram nos arquivos cinematográficos.
A história da criação de Night of the Living Dead está, toda ela, envolta numa bruma de acasos que proporcionaram o seu consequente elogio. Os indícios da sua originalidade e do seu reconhecimento como filme de arte, ao invés de estritamente comercial, deveram-se tão-somente ao reduzido orçamento. Esse aspecto, em tudo fundamental, conduziu, quer o realizador, quer toda a equipa da Image Ten, a um trabalho artesanal e a escolhas de produção que fizeram as delícias dos críticos, dos amadores e dos espectadores:
a) selecção da película em preto e branco e com algum grão – o que, nos anos sessenta, foi entendido como uma decisão de uma séria intenção do criador em dotar o filme com uma aparência documental, de naturalidade, de real projectado na tela;
b) uma filmagem sequencial acompanhada por um crescendo de texto – de modo a obterem mais dinheiro os seus criadores tinham de prosseguir com os seus contratos de realização de anúncios televisivos estabelecidos entre a Image Ten e o sector industrial de Pittsburgh, pelo que a realização foi intermitente, obrigando assim a ser gravado tal como surge ao espectador; bem como, à medida do tempo disponível, mais texto foi sendo acrescentado, razão pela qual diálogos e monólogos aumentam e intensificam no desenrolar da acção;
c) a selecção dos locais e do elenco – tudo filmado na região, com pessoas da cidade de Pittsburgh, especialmente o pelotão de caça aos zombies e os próprios monstros, alguns jornalistas (é de relevar que o texto do locutor das notícias foi escrito pelo próprio, finalizando com o seu nome próprio como terminava as suas emissões noticiosas, bem como certas imagens foram mesmo captadas por um canal televisivo local, cedidas a George Romero e inseridas na película), polícias, membros da equipa de rodagem e de produção a integrarem o elenco;
d) a escolha do “herói” – puro acaso, para Romero, já que nenhuma vez o texto refere qualquer etnia e o casting ter decorrido com critérios de “cegueira”, um blind casting, ou seja, Duane Jones (Ben) foi seleccionado pela sua qualidade representativa e por ser amigo da equipa da Image Ten.

Mas nem tudo foi motivado pelo orçamento. Certas opções de realização foram meditadas e premeditadas, especialmente a destruição da estrutura hollywodesca do género do terror. Tendo trabalhado de perto com Alfred Hitchcock3, desgostando do seu método de realização fechado a qualquer improvisação da parte dos actores, Romero permite no seu plateau o surgimento do acaso permeado pela liberdade de acção de toda a equipa, actores e cameramen – não só a rodagem principiava minutos depois dos actores se porem em movimento, a estabelecer relações, a executarem acções por sua própria decisão, igualmente Romero recorre a um processo cubista, no seu entender, de captação de cenas e de edição de imagens (mais desenvolvido nas suas criações posteriores, quer as sequelas, quer nas suas outras obras) – o que lhe possibilitou, para além da cor e do grão da imagem, alcançar essa mesma sugestão de “naturalidade”, de real ou aparência documental, ou seja, perturbar a ficção dos filmes de terror. Porém, mais relevantes são os próprios vírus que infectaram o género afastando-o do passado. De facto, a questão colocada por Ben Hervey, na sua profunda análise a Night of the Living Dead, é de enorme importância: se a película se inscreve na tradição gótica novelística e fílmica, pela recuperação da temática de uma “iluminada luta de um presente face a um passado barbárico”4, o que é, pois, o passado? Os redivivos ou a estrutura política, económica e social dos Estados Unidos da América criticada por George Romero (e, conjuntamente a esta macro-estrutura, a micro alicerçada em Hollywood)?

1Não entraremos aqui na discussão mais geral que separa o moderno do pós-moderno, somente apontamos este seu possível passo no ainda problemático entre-dois do pensamento e da cultura ocidental.
2WILLIAMS, 2011: 10-11. Traduzimos: “a parallel between what people are becoming and the idea that people are operating on many levels of insanity that are only clear to themselves”.
3Vd. HERVEY, 2008: 49-50. É de referir que muito deste texto deve à leitura desta obra, pelo que recomendamos fervorosamente o leitor, que deseje ter uma visão mais cuidada, quer da história, quer dos temas por nós aqui apontados, a adquirir o livro, bem como o interessantíssimo estudo de Kim Paffenroth, Gospel of the livind Dead. George Romero's Visions of Hell on Earth, 2006, ambos gentilmente cedidos pelo Professor José Manuel Martins.
4Ibid.: 29. Traduzimos: “enlightened present's struggle to overcome a barbarous past”.   

Sem comentários: