sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Carlos Alberto Machado




porque o meu grande amigo cam faz anos, estarão aqui alguns dos seus poemas (pelo menos um de cada edição que tenho cá em casa entre outras participações) e textos.

de A realidade inclinada


Um campo de laranjas brilha ao sol por falta de adjectivos
a meio da tarde duas rodas de um tamanho nunca visto
rasgam largos sulcos em direcção aos quadris do cego
contornando o fígado e um pouco mais ao lado
fímbrias de tecidos gastos compõem ecologicamente
a imaginação aos tombos pela colina abaixo
acima de qualquer suspeita o velho tombador de esquinas
e suspeitas jaz liquefeito o que nunca quis
foi sair daqui que cheira muito mal disse a lagarta
o que diz desde o princípio da eternidade aqui
há bicho exulta a maçã estranha sob um sol adjectivado
no campo onde nem um único centímetro de verde
perturba qualquer excentricidade.


de Mundo de Aventuras


(1)
Mais uma vez o regresso a casa.
Às escuras arrasto as mãos pelas paredes
arranho o puído papel e lustroso
e vê lá onde pões os pés meu estupor.
Quente demasiado quente o cheiro
e um tacteio mais um dorso conhecido
aguento o estômago a vazar sobre a enxerga.
Os ratos como sempre dominando tudo.


de Mito
(excerto)

agora só tenho as tuas palavras e elas ferem-me fundo
por não ser delas e delas não te poder dizer é verdade
resta-me o estúpido prazer d'as sentir sentidamente sentidas
(perdoa-me o lugar comum mas às vezes é mesmo assim)
choro quando as tuas unhas estão podres e a carne ainda nos dedos
choro quando sei que gravas palavras na calçada cinzenta
palavras que escrevem o mundo e tu acaricias a esperança
são mil as tuas palavras que sinto encostadas às minhas
e a minha filha sem saber como eu me enrolo nos sentidos e choro
e a minha filha sem saber que se podem conjugar assim certas palavras
ainda não chegou ao tempo dos verbos e dos predicados (falaciosos)
(e ainda bem como me enrolo assim nos sentidos)
eu choro mas tu não por favor não ainda faltam certas palavras
umas já tas dei outras não porque não sei na verdade quais são
nem como dizê-las com os olhos marejados de água salgada
(...)


de Magma 0 (revista)


tríptico em negro-azul
(a partir de Terrasse à Rome de Pascal Quignard)

dois

Quando há pouco descia o monte aventino cruzei-me
com caravaggio que levava no rosto cores indecisas
talvez as das sombras tomadas das minhas sombras
talvez um pouco do luto que arrastei aventino abaixo
onde vi nos olhos do meu filho o desejo de me matar
também adivinhaste a minha morte assim marie aidelle
leste também nos traços no meu rosto este meu fim?
adivinhaste o horror de eu poder ser morto
por um filho incógnito que me odeia sem me conhecer?
(...)


de Magma 1 (revista)


sobre mundos
(excerto)

Cravar uma palavra no mundo é uma enorme responsabilidade. Desde logo porque o mundo deixa de ser o mundo que era antes da palavra lhe rasgar a superfície. Depois (ou ao mesmo tempo) o mundo torna-se estranho - ou estranhamente familiar. Em cada pedaço mínimo de tempo o mundo é cortado por palavras - cravadas, arrancadas - e redesenhado por cicatrizes e feridas em sangue. A inscrição descontrolada de palavras no mundo cria um infinito palimpsesto - mundos sobre mundos sobre mundos sobre mundos... Nenhum mundo dura mais do que o primeiro infinitesimal ponto da primeira palavra que lhe rasga a superfície aparente - deslizante, repetida, clonada, morta e viva.
(...)


de Transportes e Mudanças (teatro)


A Felicidade Ideal (excerto)

Tu sabias, papá, que tudo isto ia entrando em ti, que tudo isto te destruía: por que é que não desististe? Por que é que não vendeste a porcaria destes negócios e não te dedicaste a vender frutas, ou selos, uma trampa qualquer? Porquê?
Tantas vezes fiz estas perguntas a mim próprio, enrugado de medo na minha solidão. Sofri com isto, por ti, pela mãe, sofri por tudo o que via, por tudo o que te ouvia dizer. Sofria por toda esta pobre gente que por cá anda a penar ou que se foi a penas para outro sítio qualquer.
Nunca encontrei padre ou médico que me valessem. Acho que foi por isto que deixei de ir à missa e de acreditar na ciência dos médicos. Ambos hipócritas e borrados de medo por saberem que não poderiam fazer nada.
(...)


de Dramaturgias Emergentes vol.II

Os Nomes Que Faltam (teatro)
(excerto)

Nube

Gostei de ser a mulher azul cuspida para a valeta, gostei de ouvir a miúda perguntar Oh mãe, os carros cospem?, a sério que gostei, claro que tinha gostado mais de te dizer que sim que a tua mãe não soube o que te dizer, coitada, eu azul e ela do branco dos fantasmas, depois vieram vozes demasiado desorganizadas, nunca gostei de malta desorganizada, então resolvi azular ainda mais, reduzir as pulsações ao mínimo, cerrar os olhos, cravar as unhas nas palmas das mãos, suar até ao cabelo não descolar dos olhos e da cabeça, insensibilizar-me, desulpa lá miúda, ah, a tua avó leva-te para o carro, está bem, se calhar gostas mais de amarelo, pois, se calhar é, mas eu agora desculpa lá mas tenho que azular-me o mais possível, acomodar-me à valeta, está quentinha, um pouco áspera mas não faz mal, aconchego-me, ainda consigo tirar o sapato que me resta, merda de sapatos, tão caros e não valem um caracol, também para ir para a praia qualquer coisa serve, era o que o Luís me dizia, onde é que ele se meteu, não me digas que ainda está a curtir o pó, ok, fica bem, não me chateies, olha, a mãe da miúda das cuspidelas parece que tem a mania que sabe de enfermaria, larga-me, putéfia, és fufa ou quê?, tira daí as mãos, não te aproveites, quê?, agora é um camone?, com agulhas?, estou feita, quem me mandou azular tanto, agora não consigo voltar a ligar, até parece que a coisa é a sério, isto está bonito, borrachinha apertada no braço, oh, meu, isso também eu sei fazer, e a agulha, claro, o que é julgas? (...)


de Aquitanta (teatro)
(excerto)

Sei de mais todas as tuas palavras. Tenho o corpo cheio das tuas palavras. Durante meses encheram os meus dias e agora não sei o que fazer com elas. E também não sei se quero guardá-las, adormecidas. Nunca tinha conhecido um corpo cheio de palavras. Só conhecia palavras esvaziadas de corpo, de corpos. A implorarem o corpo que não tinham. Ficção.


de Restos. Interiores. (teatro)
(excerto)

O meu corpo foi a primeira geografia da tua nova pátria. Tomaste o meu corpo e foi por ele que chegaram a ti as primeiras palavras da minha língua materna, as que dizem do amor e dos lugares do corpo por onde o amor se dá e recebe; e laranja foi a palavra que veio a seguir: partilhávamos o fruto na maré baixa dos corpos e depois cantavas um canto lento e triste a evocar a tua pátria iluminada pelo sol.


de Talismã (poesia)

O meu corpo espera o teu
cansados os dois por algo
que está além de nós
e do mundo oferecer-te-ei
um beijo e vinho tinto
depois das oito e um banho
quente à luz de uma vela
e do piano do keith jarret
já te ouço e o poema
acabado de fazer acaba
aqui onde tudo começa


de a preto & branco in Boca de incêndio nº 1

Anjo (excerto)

Logo que esta lata atinja a altitude certa, emborco dois ou três uísques e tento dormir. Para já, silêncio. Vai tudo com o cu apertadinho, esta merda hoje treme mais do que o costume. Ainda não trocámos uma palavra desde que o avião descolou. Nem falaste com a tua parceira ao lado. Eu, do meu lado, só corredor. Parece que vais tentar dormir. Manta a cobrir-te toda. Vou tentar fazer o mesmo, não espero pelo uísque. A pouco e pouco a minha cabeça tomba para junto da tua. Ou é a tua que vem ao encontro da minha? Quero lá saber. E agora, qual é a mão que se move primeiro a entrelaçar dedos com dedos? Quem primeiro roda a cabeça e abre a boca e procura os lábios, a língua do outro? Perguntas inúteis. Apenas sei que o avião começa agora verdadeiramente a voar. E há um anjo no céu.


de Naufrágios in Boca de incêndio nº 2

4

Uma onda gigante interrompe por momentos a minha actividade. Olho. Ao longe, no promontório, homens e mulheres de todas as idades agitam-se num torvelinho. Ainda caem dali, penso. Procuro voltar ao que estava a fazer antes daquele imprevisto. Contudo, o barulho e a agitação não me deixam concentrar. Olho segunda vez e lá permanece a multidão ululante. A onda parece não avançar, mas isso não passa de uma ilusão de óptica. Daqui a pouco já se poderão ver na babugem das ondas os corpos despedaçados. Ondas como esta são sempre um desperdício. São corpos a mais e nunca sei o que fazer com tanto excedente. Os dragões por hoje estão satisfeitos, afinal posso parar de lhes dar comida. E amanhã vai ser um dia farto. Por uns dias, as ondas podem mesmo descansar.


de Ventilador (poesia)

II

Não se semeiam cadáveres para que nasçam homens dizes tu
é o teu derradeiro argumento de condenação de todas as guerras
já agitaste as ideias a razão e a história mobilizaste poetas e filósofos
e um olhar de terror na televisão quiseste mostrar
diante de mim legiões de crianças a precisarem de futuro
uma urgência que todos os dias agita jornais e noticiários de TV
invade de inquietude todos os nossos momentos e o que vejo
é outra inquietude a de destroços de homens à tona da loucura
a mesma que vejo em ti desde sempre a de saberes
que apenas se pode adiar o fim agora tão perto.

NOTA: infelizmente não encontro os exemplares em pdf do Virgílio e do Hamlet e Ofélia. ficarão para uma próxima vez.


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