quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Pier Paolo Pasolini



Título: Teorema
Autor: Pier Paolo Pasolini
Editora: Edições Quasi
Tradução: Ana Tanque


Este é um livro religioso, na sua dupla raíz etimológica “religare” (religar o homem ao divino) e, a auferida por Agamben, “relegare” (uma atitude que mantém a separação entre o homem e o sagrado e zela pelas suas posições). Não descubro outro modo de o qualificar. E, no entanto, nada nele no-lo sugere, não é seu o modo enunciativo, a prédica, o tom poético, tão comum nessas obras. Em tudo, assemelha-se a um relato, um relatório (afinal o legítimo propósito do autor, diz-nos no parágrafo que abre o quarto capítulo) na sua releitura de teorema, o conceito e a obra cinematográfica por si realizada no ano anterior à publicação do romance. Trata-se, então, de um duplo questionamento, somente isso? Confesso que não sei e só posso falar, escrever, do que o autor me levou a pensar; e estas perguntas, talvez, sejam só minhas, pelo típico gesto de traição do leitor. Pier Paolo Pasolini (1922-1975), creio, não precisa de apresentações. Foi, afinal de tudo, uma figura proeminente do século XX europeu.
Ora, “Teorema” saiu, primeiramente, numa versão cinematográfica (1968) e narra a história de uma família da alta burguesia, a qual, um dia, hospeda um indivíduo que provoca a quebra total da sua estrutura. Percebe-se, na visualização e na leitura, que cada membro é metonímica e simbolicamente um segmento da estrutura social italiana, pelo que a desestruturação corresponde à falência da organização política, económica, moral da sociedade burguesa, tal como desejada pelo realizador. O romance segue a par e passo o filme – quem o tenha visto é apanhado pelas imagens na sua memória – porém, é toda uma outra obra, são dois os teoremas de Pasolini.
“Teorema”, aqui, terá de ser entendido, também, pela sua raíz etimológica, ligado a “théatron”, “theoría” e “theaomai”; e não tanto no seu uso matemático: é uma festa ou espectáculo, bem como uma experiência contemplativa; e, como tal, com todos os pressupostos, há tanto perdidos, da sua íntima partilha com o sagrado ou místico, um jogo que baralha o profano, o maravilhoso, subvertendo os modos, as formas, os signos e instaurando sempre novos sentidos do mistério através da introdução de um elemento desequilibrante. Ora, esse elemento é o visitante. Todavia, ao invés, o que introduz é bem o sentido do sagrado.
Este é, pois, um livro da irrupção do sagrado e que aponta para uma solitária liberdade de cada um. O Pai abandona tudo e parte nu pelo “deserto” em pura errância; a Mãe sacraliza o seu corpo entregando-se a todo(s) o(s) corpo(s); o Filho abandona o futuro prescrito e mergulha no sentido da criação (artística); a Filha – a relegada pelo seu sexo e por ser a que veio mais tarde – congela, por um punho austeramente fechado e deste toda uma rigidez ao corpo, a sua infância (o “infante” é aquele que não fala, relembra Nancy) e, por fim, a Criada, que antes abandonara a aldeia em busca de uma vida melhor, volta a casa prenhe de sacralidade e de ascetismo monacal, tornando-se, na verdade, uma santa, comendo apenas urtigas (o seu rosto e cabelo ficam verdes), nunca saindo de um banco onde se sentou desde o retorno, curando com o toque crianças e, enterrando-se viva, dos olhos brota uma fonte de água milagrosa. Igualmente há que referir a problematização do político e do pensamento revolucionário, a qual, parece ser a proposta pasoliniana, não decorre da transformação da economia, nem de um outro juízo em torno da política, mas bem devindo da própria irrupção do sagrado, em sentido restrito, ou mormente de uma imperceptível, porém significante, diferença “interior” do mundo de cada um. Mudar o mundo – afinal um agregado de mundos, trama plurívoca – significa, antes de mais, uma tomada de posição ética (enquanto modo de existência) assente no respeito e na responsabilidade (no sentido, claro, de dar resposta) em prol do encontro de mundos.
Pasolini, porém, falha magnificamente a sua proposta de “relatório”, não só nas suas descrições das paisagens, dos espaços, mas recorre mesmo à poesia como forma de enunciação das personagens, dos seus dilemas, as suas inquirições ao efeito do visitante nas suas vidas; de resto, tudo é realizado com uma frieza científica e sem qualquer psicologia, temos somente modos de relacionamento entre corpos no espaço, movimentações, gestos, olhares, mas toda essa superficialidade de pele é profundíssima.
Agora, leitor, quem será o teu visitante?




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