Título: Teorema
Autor: Pier Paolo Pasolini
Editora: Edições Quasi
Tradução: Ana Tanque
Este é um livro
religioso, na sua dupla raíz etimológica “religare” (religar o
homem ao divino) e, a auferida por Agamben, “relegare” (uma
atitude que mantém a separação entre o homem e o sagrado e zela
pelas suas posições). Não descubro outro modo de o qualificar. E,
no entanto, nada nele no-lo sugere, não é seu o modo enunciativo, a
prédica, o tom poético, tão comum nessas obras. Em tudo,
assemelha-se a um relato, um relatório (afinal o legítimo propósito
do autor, diz-nos no parágrafo que abre o quarto capítulo) na sua
releitura de teorema, o conceito e a obra cinematográfica por si
realizada no ano anterior à publicação do romance. Trata-se,
então, de um duplo questionamento, somente isso? Confesso que não
sei e só posso falar, escrever, do que o autor me levou a pensar; e
estas perguntas, talvez, sejam só minhas, pelo típico gesto de
traição do leitor. Pier Paolo Pasolini (1922-1975), creio, não
precisa de apresentações. Foi, afinal de tudo, uma figura
proeminente do século XX europeu.
Ora, “Teorema”
saiu, primeiramente, numa versão cinematográfica (1968) e narra a
história de uma família da alta burguesia, a qual, um dia, hospeda
um indivíduo que provoca a quebra total da sua estrutura.
Percebe-se, na visualização e na leitura, que cada membro é
metonímica e simbolicamente um segmento da estrutura social
italiana, pelo que a desestruturação corresponde à falência da
organização política, económica, moral da sociedade burguesa, tal
como desejada pelo realizador. O romance segue a par e passo o filme
– quem o tenha visto é apanhado pelas imagens na sua memória –
porém, é toda uma outra obra, são dois os teoremas de Pasolini.
“Teorema”,
aqui, terá de ser entendido, também, pela sua raíz etimológica,
ligado a “théatron”, “theoría” e “theaomai”; e não
tanto no seu uso matemático: é uma festa ou espectáculo, bem como
uma experiência contemplativa; e, como tal, com todos os
pressupostos, há tanto perdidos, da sua íntima partilha com o
sagrado ou místico, um jogo que baralha o profano, o maravilhoso,
subvertendo os modos, as formas, os signos e instaurando sempre novos
sentidos do mistério através da introdução de um elemento
desequilibrante. Ora, esse elemento é o visitante. Todavia, ao
invés, o que introduz é bem o sentido do sagrado.
Este
é, pois, um livro da irrupção do sagrado e que aponta para uma
solitária liberdade de cada um. O Pai abandona tudo e parte nu pelo
“deserto” em pura errância; a Mãe sacraliza o seu corpo
entregando-se a todo(s) o(s) corpo(s); o Filho abandona o futuro
prescrito e mergulha no sentido da criação (artística); a Filha –
a relegada pelo seu sexo e por ser a que veio mais tarde –
congela, por um punho austeramente fechado e deste toda uma rigidez
ao corpo, a sua infância (o “infante” é aquele que não fala,
relembra Nancy) e, por fim, a Criada, que antes abandonara a aldeia
em busca de uma vida melhor, volta a casa prenhe de sacralidade e de
ascetismo monacal, tornando-se, na verdade, uma santa, comendo apenas
urtigas (o seu rosto e cabelo ficam verdes), nunca saindo de um banco
onde se sentou desde o retorno, curando com o toque crianças e,
enterrando-se viva, dos olhos brota uma fonte de água milagrosa.
Igualmente há que referir a problematização do político e do
pensamento revolucionário, a qual, parece ser a proposta
pasoliniana, não decorre da transformação da economia, nem de um
outro juízo em torno da política, mas bem devindo da própria
irrupção do sagrado, em sentido restrito, ou mormente de uma
imperceptível, porém significante, diferença “interior” do
mundo de cada um. Mudar o mundo – afinal um agregado de mundos,
trama plurívoca – significa, antes de mais, uma tomada de posição
ética (enquanto modo de existência) assente no respeito e na
responsabilidade (no sentido, claro, de dar resposta) em prol do
encontro de mundos.
Pasolini,
porém, falha magnificamente a sua proposta de “relatório”, não
só nas suas descrições das paisagens, dos espaços, mas recorre
mesmo à poesia como forma de enunciação das personagens, dos seus
dilemas, as suas inquirições ao efeito do visitante nas suas vidas;
de resto, tudo é realizado com uma frieza científica e sem qualquer
psicologia, temos somente modos de relacionamento entre corpos no
espaço, movimentações, gestos, olhares, mas toda essa
superficialidade de pele é profundíssima.
Agora, leitor, quem
será o teu visitante?
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