sábado, 23 de julho de 2011

Malcolm Lowry




título: Escuro como o túmulo onde jaz o meu amigo
editora: Publicações Europa-América
col.: século xx
tradução: Cármen Gonzalez

À margem dos livros outros há que se criam. À margem, em numerosos cadernos, folhas soltas, avolumadas notas de paisagens, pessoas, situações, luzes, letreiros, sons, cheiros, frases como pedrinhas a caírem num charco e que voltam e revoltam até afogarem a mão que escreve. À margem dos livros permanece, tantas vezes a fervilhar, um magma, uma força vibrante que nem todos os escritores podem olhar, pressentir, mergulhados que estão no seio da obra ou na perseguição do fio de Ariana da próxima criação. Mas na margem...
Conheci, até hoje, nas minhas leituras, dois autores capazes de prestar atenção ao formigar da margem. Já aqui os apresentei. Hoje retomo o inglês Malcolm Lowry e o seu “Escuro como o túmulo onde jaz o meu amigo”.
Desconheço a situação editorial fora de Portugal, se será ou não fácil encontrar este romance póstumo, um entre outros que passaram pelas mãos da sua esposa Margerie Bonner (p. ex., “Um barco de Outubro para Gabriola”) e Douglas Day, mas foi graças ao poeta e livreiro Paulo da Costa Domingos, a quem estou assaz agradecido, que pude, finalmente, ter este romance, entre mãos, raríssimo.
A introdução ao romance pela pena de seu amigo, Douglas Day, é de extrema importância para quem quiser conhecer mais sobre o atormentado autor e a germinação desta importante, pelo menos para mim, obra. Tal como outros escritos de Lowry este não é de fácil classificação. Não é tão formalmente inventivo como o conto “Através do Canal de Panamá”, nem nos conduz febrilmente ao vórtice das angústias das suas personagens, como no magnífico “Debaixo do Vulcão” ou “Lunar Caustic”, mas recupera bem, aqui e ali, o tom pelo qual Lowry ficou conhecido. Essa perda dever-se-á, decerto, ao facto de o livro não ter sido composto, estruturado por e passado pelo crivo de Lowry – e conhece-se bem o complexo processo de afinação por que passava um texto, sendo o caso mais conhecido o “Vulcão” – e muito teria ele ganho com a sua revisão. Dir-se-ia, então, que se trata de uma obra menor e, no entanto, estamos muito longe da verdade. É uma obra singular, pertence de direito ao corpus lowryano e, o mais, estabelece com o “Debaixo do Vulcão” e a célebre carta “Por cima do Vulcão” um triângulo fenomenal.
Como outros seus contos e romances o tom geral é a mistura entre ficção e autobiografia – difícil é não ver Lowry nas suas personagens – ao ritmo do monólogo interior, do imenso labirinto do pensamento solipsista, atravessado, aqui e ali, por diálogos, há que dizer, casuais, corriqueiros, rasos, como vozes que se intrometem obrigando o monólogo a vergar-se, a reflectir-se, a descobrir novos caminhos. O casal Wilderness parte do Canadá para o México a fim de celebrar os cinco anos de matrimónio, aguardar as respostas de editores, mostrar o país que deu origem ao romance escrito por Sigbjorn, recuperar a saúde e evitar de vez o alcóol que consome a vida do casal; ou seja, a vida de Lowry e sua esposa após terem enviado o “Vulcão”, terem perdido tudo no incêndio que consumiu a sua cabana na Colúmbia Britânica, salvar o romancista dos seus pesadelos e tormentos, a bebida e o fogo. Assistimos ao renascimento de um homem, desde o seu negro fundo pleno de medo a um pronto a lutar pelos seus sonhos, escrever, o romance. E para que o casal se salve do simbólico fogo que os consome, Primrose Wilderness sugere a Sigbjorn reencontrar o grande amigo mexicano, a pessoa de quem melhor falava quando recordava a sua vida passada no país do mescal e da tequila.
E eis que chegamos ao momento mais precioso do livro. Este é o romance na margem de “Por cima do Vulcão”, o espectro que paira sobre a defesa carnal de uma das mais belas obras da literatura. Esta é a oculta luta do instante dessa carta que anatomiza o “Vulcão” que, como tal, é de extrema fragilidade, um momento salvífico na vida de Lowry. Acompanhamos o seu desgosto, a sua queda e a sua recuperação. É uma brisa de esperança no deserto. O que se lhe seguiu, todos sabemos, a descida ao túmulo ao som da “Sagração da Primavera”, anos mais tarde.

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