terça-feira, 5 de julho de 2011

em cinco dias évora-fès-évora fiz (xxviii)

Abrindo bem olhos começámos a ver mais e mais montanhas, cinzentas e verdes montanhas de rochas e árvores altas, pinheiros para ser mais exacto. Isto era o interior do Rif, longas curvas e contracurvas, montanhas a perder de vista, a ocultar-nos a vista, a ocultar-nos da vista o sol lá no alto. Isto era o interior do Rif, o peso da terra alta, das sombras longas, do frio repentino, território gelado e do Inverno banindo a Primavera que nos tinha acolhido durante dias. Isto era o interior do Rif, carros lentos, carros parados ao longo da estrada, terriolas perdidas cortadas de qualquer comunicação com o resto do país. Isto era o interior do Rif, um país à parte de Marrocos, uma zona entre qualquer coisa, entre África e Europa, paisagem alpina, sim, paisagem alpina de pinheiros e neve e gelo e frio. Isto era o interior de um país, um coração gelado, abandonado, pouco amado, um outro deserto. Isto era o Rif, o grande roteiro do kif, pessoas que nos acenam e assinalam que eles têm o que todos os turistas devem querer em Marrocos, carros que literalmente nos perseguem perguntando se queremos comprar erva e haxixe. Um deles, aliás, colou-se a nós durante algum tempo. O T. fazia-lhe sinais para passar à frente, mas ele tentava pôr-se lado a lado com o jipe e iniciar ali mesmo, a meio da condução e da estrada, o tráfico e nós mais preocupados com o tráfego dos carros e com as nossas vidas do que propriamente com uma provisória fuga à realidade. Na verdade a realidade era que aquele gajo brincava com as nossas vidas, a dele e as nossas. Era um risco demasiado grande afastar-nos por completo da vida por, como já disse, uma pequena e provisória fuga. Vendo que um carro se aproximava em sentindo contrário, o tipo acelera e coloca-se à nossa frente, fazendo sinais com os quatro piscas para pararmos. Fazemos isso, paramos na beira da estrada uns metros atrás do marroquino. Então de onde vêm; vimos de Fès; sim mas de onde; de Portugal; não querem ir até minha casa e fumar um pouco de kif, não fica longe daqui é ali naquela parte, e apontava-nos umas casas, pois pá não vai dar, vamos a caminho de Chefchaouen ter com uns amigos, a mentira do costume resulta sempre, e já estamos atrasados; ah os vossos amigos podem esperar um pouco, fumam um ou dois e podem levar para os vossos amigos também, a mentira não resultou logo à primeira, tentamos uma segunda, terceira, quarta vez, as suficientes com toda a cerimónia e educação agradecendo sempre, shukran, shukran mas não vai dar estamos mesmo muito atrasados, e na realidade começávamos a ficar e, porque não dizê-lo, assustados também. Há quem vá às casas das pessoas e fumem, tudo bem, mas nós não somos assim, não fumamos e também não nos sentimos muito à vontade em casas de pessoas que não conhecemos. Talvez sejamos uns medrosos e talvez até estejam a pensar isso mesmo agora mesmo, enquanto que pela minha cabeça não passava nenhum preconceito em relação àquele marroquino nem em relação a vocês que talvez estejam a pensar olhem só os três mariquinhas. A questão é, o que é que isso interessa, se sou ou não, ou se somos ou não, uns medrosos. Podíamos ter ido e ele até podia ser a melhor pessoa do mundo, a mais bondosa, humilde, simpática e hospitaleira. Sempre pensei que a vida necessita de um risco de vez em quando, mas também sempre pensei que não se faz de e se. Talvez isso revele falta de coragem e medo, ou talvez excesso de segurança e falta de confiança, talvez isso tudo e talvez nada disso porque afinal sou apenas uma pessoa que, como todos vocês, tem vícios e virtudes. Mas adiante.
Depois de alguma conversa conseguimos despachar-nos com o número de telefone do tipo e a promessa que lhe telefonávamos um dia destes. E este não foi o único que nos tentou convidar para fumar em sua casa, houve outros, e também não foi o único que nos quis vender kif, houve mais, muitos mais e de todas as idades. Mas era urgente chegar a horas a Chefchaouen já que apenas nos reservariam o quarto até às sete horas da noite, e assim foi porque a S. telefonou para o Hotel Madrid, ainda em Sefrou, avisando que chegaríamos atrasados e pedindo para manter a reserva até às sete horas. Eram, portanto, horas de pisar no acelerador, de nos despacharmos e despedir-nos do interior do Rif. E que despedida. Tivemos ainda a possibilidade de ver o mais profundo desse frio coração de rochas. Ketama devia ser a pior das cidades marroquinas. Esqueçam lá Sefrou, o sangue a escorrer e o cheiro nauseabundo da carne, ossos e lã queimada. De um momento para o outro deixa de haver estrada de alcatrão. O caminho era apenas lama, terra de neve descongelada e lixo e lixo e mais lama. Parecia uma caricatura monstruosa daquela cidade da série que se passa no Alasca. Em dois minutos já a tínhamos atravessado. No fundo da cidade o cruzamento dizia, Al-Hoceima para a direita e para esquerda o nosso destino, Chefchaouen. Não havia tempo a perder. O sol já começava a descer e faltavam ainda, sei lá, uns cem quilómetros de montanhas, de curvas e contracurvas e o fim da floresta escura. Mas tínhamos a nosso favor uma estrada em melhores condições e música para nos acalmar.

(cont.)

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