domingo, 3 de julho de 2011

em cinco dias évora-fès-évora fiz (xxvi)

31 de Dezembro de 2006

Como já tinha dito, Allah protegia-nos como a nenhuns outros. O inverno não existia, apenas primavera de sol e de temperatura amena. Arranjámo-nos e descemos todos juntos, uns de elevador, outros de escadas. Pagámos ao recepcionista, despedimo-nos e lá fomos para a garagem do hotel onde se encontrava o jipe do T., para arrumarmos as nossas coisas e não andarmos carregados no pequeno-almoço do Al Khozama. Pedimos ao segurança, um homem simpático de djellaba que lia o jornal em dia de festa, para guardar o jipe só mais um bocadinho, afinal tínhamos até ao meio-dia para sair definitivamente do hotel. Tomámos o pequeno-almoço e despedimo-nos também do Sr. Khozama (tinha-me enganado, foi neste dia que tirámos a fotografia e não no outro como antes tinha dito) e pedimos informações sobre qual o melhor caminho de volta a Chefchaouen, já que o mapa indicava dois. Tínhamos vindo por um e desejávamos saber qual era o mais rápido e seguro. Ele disse um dos dois e que um deles era muito bonito. Enquanto comíamos fomos surpreendidos pelo que não parecia nada de nada a Fès que conhecíamos. Seriam umas dez horas e à excepção de algumas pessoas que também tomavam o pequeno-almoço ou apenas bebiam café, ou meia dúzia de carros que passavam, na maior parte táxis, as ruas estavam vazias. Quase que não se ouviam buzinas, não se ouviam gritos, conversas, música, nada. Fès-se silêncio em Fès. Nada se fazia em Fès. Era na verdade a surpresa das surpresas. Pagámos e fomo-nos embora de volta para o hotel. Uma última gorjeta ao segurança e lá vamos nós ver Sefrou, a trinta ou quarenta quilómetros para Sul. Só que primeiro era necessário encontrar o caminho para Sul nas indicações de Fès. O que o mapa dizia era uma coisa, outra eram os sinais de trânsito. Demos uma grande volta à volta da Medina e fomos dar a um cemitério. Por baixo tínhamos Fès inteira e por cima colunas de fumo negro. Eram as nuvens negras da imolação dos carneiros empestando o ar com o cheiro nauseante de carne, osso e lã queimada. Nós não sabíamos o que era até descobrirmos a estrada para Sefrou, que atravessava a periferia de Fès e de cinco em cinco metros em cada lado da estrada rapazes, só rapazes dos mais pequenos até aos adolescentes, faziam fogueiras com tijolos e grelhas com cabeças de carneiro chamuscadas e sangue a escorrer para as valetas, literalmente rios e rios de sangue. Sangue nos passeios, nas mãos, nas facas que empunhavam orgulhosamente, sangue a escorrer das cabeças decepadas, dos pescoços saudosos das suas cabeças, sangue na roupa, nas rodas do jipe.
Mais chocante ainda do que esta imagem ao longo da estrada que cortava a periferia, foi o nosso passeio por Sefrou quando lá chegámos. Enquanto procurávamos um sítio para comer, passeávamos numa cidade com lixo espalhado por todo o lado devido à feira de legumes e últimos carneiros. Imaginem a porcaria que resta depois da feira mensal no Rossio de Sº Braz à dimensão de toda Évora, com a agravante das pessoas lançarem sacos de lixo pela janela para a rua (um deles ia-nos atingindo), mais o cheiro da carne e da lã queimada, o sangue a escorrer e, na pequena ribeira que atravessava Sefrou onde desembocavam fossas de esgoto, sangue a ser lançado, jorrado, cuspido, vomitado dessas bocas para dentro da ribeira que rumava rubra para onde não sabemos.
Não havia mais nada para ver e tudo estava fechado ou não serviam nada para comer. Decidimos então comprar pão marroquino, cinco pães espalmados, cinco discos, dois deles cobertos de sementes de sésamo. Como ainda nos sobravam bastantes latas de salsicha e atum (a típica comida de longas viagens de carro), faríamos sandes quando tivéssemos fome. Voltámos para trás, na mesma estrada que dava para Fès e encaminhávamo-nos para Chefchaouen via Ketama através das montanhas do Rif.

(cont.)

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