quinta-feira, 30 de junho de 2011

em cinco dias évora-fès-évora fiz (xxiii)

Abdhul olhou bem para as mantas, depois olhou para mim e de volta para os mantas. Eu ia dando golos no chá porque já ia engolindo em seco há bastante tempo e o sapo nunca mais ia para baixo. Senta-se ao meu lado numa cadeira e pede mais um cigarro. Pega num pedaço de papel e aponta um preço e depois passa-mo para a mão. This is how we Berber do; now you right your price. Ele tinha escrito mil dhirames pelas duas mantas e eu só tinha comigo sessenta euros, portanto eu tinha que baixar o máximo que conseguia. Perguntei ao T. o que era melhor, quanto é que ele pôs, mil, e quanto é que tu tens, sessenta euros, então propõe metade daquilo que tens, ok. Escrevi trinta e disse-lhe que só tinha euros, no problem euros or dhirams, three hundred you say, no, no, i sell you for eight hundred, six hundred, disse eu, no, blankets are very good, pure wool, pure wool, touch it, touch it, see pure wool, seven hundred, six hundred I can only give you six hundred, talk to your friends and try to get more. O gajo não queria mesmo os meus sessenta euros. Falei com o T. e com a S., só que nenhum deles tinha dinheiro para emprestar. A S. não tinha de todo e o T. só tinha o suficiente para comprar as suas coisas. Voltei a atirar os sessenta euros, dizendo que podia arranjar só mais um pouco em moedas. Só que o Abdhul não queria moedas, moedas não lhe serviam de nada, não as conseguia trocar. Notas sim, quaisquer que sejam, marcos, libras, dólares, mas desde que sejam notas. Só que notas, cá do meu lado, não havia para além dos sessenta. Enquanto íamos nestas andanças ele empacotava as duas mantas num grosso e pequeno rolo de papel reciclado cor-de-rosa, fechado com aquela típica fita-cola castanha. Não, desculpa lá Abdhul só tenho mesmo sessenta euros. I can only really give you sixty euros. Alright I will take your sixty euros but you have to give me something more. Aí todos procurámos qualquer coisa para dar ao Abdhul, até que a S. sacou do seu maço de tabaco, ela tinha vindo preparada com três maços, e rematámos o negócio por sessenta euros e um John Player Special preto. Podia ter sido pior. E agora, força T., tu consegues.
O T. não tinha mais coisas do que eu, tinha exactamente o mesmo número de objectos só que de maior valor. O T. queria trazer uma manta enorme, para aí com dois metros e meio de altura e um metro e oitenta de largo, e um tapete de cactus five, logo o preço era mais elevado do que aquele que eu paguei. Como eu estava bastante atordoado com toda a negociata, não prestei muita atenção ao preço que o Abdhul propôs, só sei que o T., depois de muita discussão e cigarros oferecidos, levou o que tinha para levar dando apenas metade do dinheiro acordado, porque o T. não tinha suficiente, e ainda um panfleto turístico dos Açores e mais qualquer outra coisa. Ficou logo ali acordado, já que era preciso ver o dinheiro que faltava e no dia seguinte era Baraka, day of the feast, que o ajudante de vendas iria connosco até ao Grand Hôtel de Fès. Quando saímos era já noite escura, ficámos lá dentro para aí uma hora e meia entretidos a ver tapetes, mantas, a beber chá de menta e a fumar cigarros. You better follow me; I know some shortcuts and the Medina at this time can be very dangerous. As ruas estavam quase vazias, não parecia a mesma Medina. Candeeiros acesos, janelas iluminadas, portas fechadas e nas ruas que tinham sido as mais movimentadas muito lixo pelo chão. Onde antes havia sombras de sol, agora havia a obscuridade da electricidade. Começámos a percorrer a Medina atrás do ajudante, a tentar acompanhá-lo, mas ele andava rápido, queria despachar a situação o quanto antes para poder voltar à loja e ajudar na arrumação. O que antes era um labirinto de paredes, casas, portas, quinquilharia, roupa, pessoas, animais, era agora um enorme tapete percorrido pelos fios apertados e entrançados com o perigo de caír nos buracos. Tanto parecia que subíamos como descíamos, por vezes parecia que andávamos às voltas, tanto nos aproximávamos de grupos de pessoas e do rebuliço que ainda existia, como de seguida apenas se ouviam os nossos passos, só faltava como banda sonora o People are strange dos Doors. Mas acabámos por encontrar a saída, a mesma onde tínhamos apanhado a mini-carrinha táxi, com a praça cheia de gente à espera de autocarros e, claro, táxis. O ajudante, mais rápido que nós, encontrava-se já a tentar parar algum táxi, mas estava a ser difícil, quase ninguém ia para o centro de Fès. Passado algum tempo, ele conseguiu arranjar um, mas como ele receava que fugíssemos sem pagar, decidiu que ele e o T. iam num táxi enquanto a S. e eu iríamos atrás noutro. Ora, se para um árabe foi difícil arranjar um táxi, para dois europeus, melhor dizer, para uma europeia e um banana trapalhão como eu o caso seria mais difícil. Lá partiram e nós ficámos para trás. Entre o nervoso e o assustado, a S. e eu deixámo-nos estar na praça porque julgávamos que o tipo tinha falado com outro taxista para nos levar ao Hotel, mas não, nada disso. Estávamos por nossa conta. Os táxis iam e vinham e nós ali especados a olhar o movimento, até que a S. tomou o assunto nas mãos e também ela, como o T. à entrada de Fès, deixou o seu espírito marroquino entrar no corpo e mal viu um táxi aparecer e largar os seus passageiros, chegou-se à frente de umas mulheres que já lá estavam antes de nós e conseguiu o táxi para nós. Eu só pensava, sim senhor, isto é que é uma mulher.

(cont.)

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