quarta-feira, 29 de junho de 2011

em cinco dias évora-fès-évora fiz (xxii)

Entretanto, do nosso vendedor já só quase o víamos do peito para cima, e como o dono da loja já tinha aviado o casal com uns quantos tapetes que não queriam veio ter connosco. Vindo directamente de um filme do Kusturica, entra de rompante na nossa divisão um tipo alto e magro, de bigode, cabelo curto preto e ondulado, como quem já teve muitos caracóis e agora já só tem a ideia deles, de fato de treino de polyester azul e duas largas bandas verdes, ténis e meias brancas a verem-se porque as calças apenas lhe iam até pouco abaixo das canelas, fios de ouro ao peito e cachuchos nos dedos e já não me lembro se tinha ou não um ou outro dente de ouro, ou já sou eu a inventar, de qualquer modo se não tinha passa a ter. Fès-se apresentar, ssalamu ‘lekum je suis Abdhul, acho eu que foi isso que ele disse. Aproximou-se de nós, estendeu a mão um a um enquanto dizíamos o nosso nome que de seguida ele repetia. So, you want carpets, hã? We have many carpets, e lá veio a conversa toda de novo mais os cactus five. Depois trocou algumas palavras em árabe com o outro, como a dizer-lhe, estás a ver como se faz, quando é que tu vais aprender? Do you want tea? You want tea don’t you? Bring us some tea. Our tea is very good, very good for your health, yes, yes, you can smoke if you want, you have kif, não, não tínhamos, you can smoke it here inside my store but not outside hã? Give me a cigarette? You have cigarettes? Thank you. Depois foi-nos perguntando de onde vínhamos, o que fazíamos, ah portuguese, no much money, and your theatre artists and students, ah even less money, but no problem, no problem, we make good price for you, you will see, good price, good price. Estávamos literalmente tramados, caímos na teia como mosquinhas, fumávamos relaxados a beber chá de menta, conversávamos recostados entre as almofadas e na trama dos tapetes de lã. O único de nós que estava interessado em tapetes era o T., enquanto que agora, para o Abdhul, todos nós estávamos interessados e quem mandava ali no negócio era ele e a S., mais ninguém. Nunca é o homem o interessado em tapetes, mas a mulher, e mesmo que seja o homem o interessado, chega-se à compra através da sedução do desejo inexistente de tapetes na mulher. O Abdhul tentava a todo o custo interessar a S. nos tapetes ou nos mantas, e a S. ria-se com aquele seu riso meio envergonhado.
Então ele propôs uma coisa para acelerar os termos do negócio. Quando víamos algum tapete ou manta que nos interessasse de alguma forma, diríamos rali (khali), se não quiséssemos diríamos então, ishma. E, claro, sabendo que a S. estava comigo, começou connosco a caça. Com estas duas palavras o cerco, aquela trama que nos ia cobrindo, adensava-se, apertava-se e ia nos deixando cada vez mais desconfortáveis. Por cada ishma ou rali dito a fuga era adiada, cada manta ou tapete posto de parte e menos hipóteses tínhamos de ficar com o nosso pouco dinheiro. A S. passou a bola para mim e como eu sou um panhonhas e a minha espinha se verga nestas situações desconfortáveis, em vez de dizer que apenas acompanhávamos o T. nesta vinda à magnífica magazine lá fui dizendo ishma, ishma, ishma e rali, rali, até que fiquei com duas mantas abertas na minha frente e com a S. a dizer-me com o olhar olha lá a merda que fizeste, para quem não queria gastar dinheiro fizeste boa, agora é contigo e o meu olhar de cãozinho arrependido apenas era visto com simpatia pelo Abdhul. Assim que me despachou, começou o cerco ao T.. E o T., embora mais confiante porque realmente queria comprar tapetes e mantas, também foi dizendo ishma, ishma, ishma e rali, rali, rali até que ficou com o que mais ou menos queria. E agora só faltava o que mais custava, a negociata malandra. Pois é, agora é que iam ser elas.

(cont.)

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