terça-feira, 28 de junho de 2011

em cinco dias évora-fès-évora fiz (xxi)

Chegados à dita rua, passando pela pequena loja onde um homem chamava a atenção a sua clientela com um gato que se passeava pelas tinas, pratos, chichas (narguilé) e outras bugigangas que vendia, estacámos o passo à porta de uma outra loja, de uma família berbere. Encostados à parede em frente da porta rodeada de tapetes de todos os tamanhos, uns por cima dos outros como pendurados num bengaleiro, mirávamos essas teias apertadas de lã multicolor com o nosso melhor olhar de desdém, de quem não quer nada do que ali se mostrava, tínhamos apenas parado para descansar as pernas, ou para admirarmos um gato que se empoleirava no parapeito de uma janela que, por acaso, ficava por cima da loja, ou então para dar passagem aos carneiros, aos pachorrentos burros, aos rapazes que transportavam carrinhos cheios de botijas de gás. Só que o tipo que estava à porta, não sei como, lembrou-se da nossa cara, ou da do T., quando pela manhã atravessámos aquela mesma rua e fizemos o mesmo ar. E como alguém disse, não conseguimos mergulhar na mesma água duas vezes seguidas, portanto o tipo sabia que não estávamos ali por acaso pela segunda vez. Vous voulez des tapis? On a des bons tapis dans le magazine. Entrez, entrez. No, no, nosotros apenas miramos. Ah son españoles? No, portugueses. Tenemos otros tapetes dentro de la Loja, entren, entren. Miras algún que te gusta, hã? Pronto, fomos completamente pescados, não havia escapatória possível naquele momento. Por acaso o T. até queria levar alguns tapetes para Évora e por essa razão entrámos na loja atrás do vendedor. É preciso dizer que o funcionamento de uma loja como aquela é semelhante à do restaurante que vos expliquei há pouco. Quem manda ali é o dono da loja, enquanto o subalterno, seja ele um desconhecido, ou um amigo, ou, o que é muito mais normal, um familiar de sangue, apenas lá está para atender e fazer a apresentação estudada do estabelecimento e do material para a venda. Ali não era excepção. O tipo que nos convidou para entrar, extremamente solícito e educado, berbere de pele branca, mas muito moderno, calça de ganga, camisola de lã, ténis, blusão do tipo baseball e boné enfiado quase até ocultar os olhos, este tipo que nos aliciou a admirar os tapetes, dizia, era o subalterno. O patrão, esse, atendia uns clientes. Aquilo que julgávamos ser uma loja pequena, passado o corredor da porta, abre-se numa sala grande, com tapetes a toda a volta. Tapetes enrolados fazendo longas prateleiras de lã, como numa antiga biblioteca cheia de rolos manuscritos, tapetes amontoados no chão construindo pirâmides, outros ainda aos montes uns por cima de outros, como fiambre ou queijo fatiado nas charcutarias, e ainda outros gigantescos estendidos cobrindo a quase totalidade da sala, deixando muito pouco chão a descoberto. Nem um único passo se ouvia e as vozes vendedoras eram por vezes quase sussurradas. Como o dono da loja, como já disse, atendia um casal de turistas, o nosso vendedor levou-nos para uma sala contígua a fim de dar largas e pôr em prática o seu discurso. Sentámo-nos num sofá entre almofadas, à nossa frente lá estava ele, bem como nós, rodeados de tapetes a toda a volta nas paredes, menos na abertura que dava para a outra larga divisão. Intercalando espanhol e inglês ele procurou saber quais eram os nossos desejos: You have come to the right place and at the right time, because tomorrow is Baraka, day of the feast, very important day for us. Perguntámos se era por isso que haviam tantos carneiros, yes lambs are for Baraka, day of the feast, tomorrow we cut lamb heads and we all join together, all families eat lamb together, então amanhã está tudo fechado é isso, yes everything close for Baraka, day of the feast, people everywhere comes to Morocco for Baraka and new year’s eve, ah, pois, nós são sabíamos. You come to the right place. Do you want carpets, mantas? Qué querés ver? Tell me. We have many kinds of carpets and in different types of material, in wool, lana, like these, handmade, all handmade, hechos a la mano, very resistant, touch it touch it, we have carpets in silk, seda, very very beautiful, very soft and in many colours, red, yellow, blue, any colour you want, and we also have one type of material that you have never seen, like that one beside you, very new, it’s our last kind of carpet, cactus fibre. Estávamos encantados com tudo aquilo, era um verdadeiro vendedor. O tipo ia e vinha, ia e vinha. E o T. só dizia que não queria comprar apenas ver. Está bem está, se uma pessoa diz que apenas quer ver e ainda por cima se encontra sentado dentro da loja, ver quer dizer comprar. Ver é lá fora, lá dentro compras e calas. Eu e a S. só nos ríamos e o tipo ia e vinha, saía da sala e voltava a entrar cada vez com mais tapetes e mantas. O T., mão no queixo, entrava no jogo, mas o que ele queria era um tapete que tinha visto à entrada, por isso o problema era como dizer que ele, T., estava interessado no tapete exposto à entrada da loja sem lhe dizer directamente, o que eu quero é aquele ali pendurado, fazer com que o tipo trouxesse o desejado sem que o T. mostrasse o seu desejo. Aquilo era engraçado, o T. sem pronunciar uma palavra dizia, vá, tu sabes qual é o tapete que eu quero, tu sabes o que eu desejo, vai lá buscá-lo e fazemos negócio, e o tipo olhava para o T. no meio daqueles tapetes que ele desenrolava e, também sem querer dizer, eu sei qual é o tapete que tu queres, eu vi-te a admirá-lo hoje de manhã e ainda há pouco, eu sei qual é o teu desejo, mas isso é o que te prende aqui dentro e eu vou fazer com que te esqueças dele e pôr-te a desejar o que te trouxer, não fazemos o negócio à tua maneira mas à minha. E o tipo ia e vinha, desenrolava e estendia, dava a tocar e sempre, mas sempre, a querer aliciar-nos a todos, não só ao T., mas a todos e em especial com o the one and only cactus fibre, que ele pronunciava cactus fivre quase omitindo o r. Nos meus ouvidos aquilo soava a uma banda rokcabilly, os cactus five. Cactus five, cactus five, mas que merda é essa? Eu devia estar distraído, como costume, quando o tipo apontou para o tapete em cactus five e aquilo já me começava a parecer absurdo.

(cont.)

Sem comentários: