segunda-feira, 20 de junho de 2011

em cinco dias évora-fès-évora fiz (xiii)

Pensávamos quanto custaria o arranjo. Eu disse que não pagaríamos mais de vinte contos, cem euros, porque tinha sido isso que tinha pago a um casal a quem provoquei o encontro acidental entre a minha canela e a porta da traseira de um fiat punto numa das apostas mais estúpidas que alguma vez firmei (quem aguentava mais tempo a fazer o pino numa estreita rua de Évora onde passavam carros, já com alguns copos bebidos). Mas também podia ser mais. Ou menos, porque quando chega a carros é a mesma coisa do que me falarem de informática. Soa-me tudo igualzinho à professora do Charlie Brown. Bom, adiante.
Tivemos sorte. Allah olhava por nós com misericórdia. Surgiu um homem alto, de óculos e bigode com um ar preocupado mas nada violento acompanhado de mais três indivíduos. Chegou perto do carro e começou a avaliar os estragos, depois cumprimentou-nos e recomeçou a avaliação. Enquanto isso, o T. incumbiu a S. de ser a nossa intermediária de negócios e tradutora porque era, e é, a que falava mais fluentemente francês. Muito calmamente, quase docemente, a S. perguntou ao senhor se ele era de facto o dono do carro e, tão amavelmente quanto lhe era possível, se podia ver a sua carta de condução e os documentos do carro. Era um pedido arrojado de uma mulher, fosse ela ocidental ou não, para um homem do Islão. De sobrolho erguido e mostrando uma certa e estranha paciência fingida com laivos de masculina arrogância para com o sexo feminino, o homem tirou do bolso das calças as chaves do carro, abriu-o, meteu a mão no porta-luvas e de lá de dentro tirou os seus documentos e deu a ver à S. Ora, quando nervosa a S. tem umas saídas fantásticas e sem papas na língua e apenas com um reparo toda a masculinidade islâmica foi desarmada. Aquela máscara séria e preocupada de bigode e óculos desmanchou-se em sorrisos e maneirismos envergonhados. Reparando na fotografia da carta de condução e comparando-a com aquela cara ali presente a S. pergunta se aquele é o senhor ao que ele responde que sim, e então ela diz-lhe, em francês claro, nem parece o mesmo, está mais magro assim como se já o conhecesse há anos e não o visse há muitos mais, um pouco à semelhança dos tios e tias e avôs e avós e mães que não nos vêem durante uma duas semanas, um mês no máximo e dizem logo estás mais gordo ou então já te olhaste bem, não deves comer nada não é és só pele e osso. E zás, só com uma frase aquele cubo de gelo transformou-se em geleia ou manteiga derretida. O público delira. 1 zero para Portugal, vamos ver a repetição. Renascença, T. enfia o jipe pela porta lateral, faz a revienga centra para a S. que frente a frente ao guarda-redes marroquino lhe parte os rins com um está mais magro. Quantos conflitos não se poderiam ter resolvido desta maneira.
Depois disso, a S. pergunta se não seria melhor chamar a polícia já que nós tínhamos seguro de viagem, mas o homem não estava para ter chatices, iriam trazer muita papelada e se calhar teríamos todos de ir para a esquadra e ninguém quer isso. Assim sendo teríamos de acordar um preço, o que queria dizer o mesmo que acordar para a vida pois não podíamos ser enganados, o que seria fácil já que estávamos a cair de sono. Enquanto iam chegando mais pessoas, o homem de mão no queixo mirava e remirava o carro danificado e olhando de soslaio para a S. atira para o ar mil dhirames. Golo de Marrocos, 1 igual no resultado. Mil dhirames, responde a S., oui, devolve o homem mão no queixo, mil dhirames T., diz a S. nervosa a rir-se, e isso dá quanto, cem euros? cem euros? cem euros!, diz ao homem que não temos connosco esse dinheiro e que o temos de levantar e pergunta-lhe onde é que há uma máquina de Multibanco. A S. lá perguntou e o homem disse que iria connosco até à máquina.
Nesse momento eu fiquei para trás, voltei para o hotel para guardar as nossas coisas e fumar mais um cigarro com o recepcionista, preencher os papéis de registo com os passaportes de ambos e esperar que voltassem. Eles deram a volta ao hotel com o marroquino e lá foram levantar o dinheiro, só que para azar dos azares o primeiro Multibanco que encontraram deu-lhes problemas. O T. bem tentava e tentava mas dinheiro nem vê-lo, se calhar o carochito do porto de Algeciras estava lá dentro e não queria devolver o dinheiro. De momentos parecia que os papéis se tinham invertido. Se nós somos avisados para ter cuidado nos negócios com os marroquinos, ali mais parecia que seríamos nós a enganá-los e o tipo já estava a ficar aflito. Tão aflito que acabou por tirar o cartão da mão do T. e tentou ele mesmo enfiar na máquina a ver se com ele dava e Fès com tal veemência que até a S. lhe pediu para ter calma. Para sorte de todos, no outro lado da rua havia mais uma caixa de Multibanco. Aí a S. conheceu por experiência própria a aventura de atravessar uma rua em Marrocos. É um óptimo treino de reflexos, de nos mantermos alertas e, acima de tudo, de nos manter vivos porque muitas vezes nem com o sinal vermelho para os carros e verde para os peões os condutores abrandam a velocidade. Os marroquinos atravessaram logo estrada. O T., que já conhecia como aquilo era, não ficou muito atrás, mas a S., ui, demorou um pouco mais. Uma vez do outro lado, a máquina cumprimentou-os e ofereceu-lhes o que queriam e de novo voltaram para o lado de lá da rua com mais uma aventura de travessia para a S.

(cont.)

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