domingo, 19 de junho de 2011

em cinco dias évora-fès-évora fiz (xii)

Ora encontrávamo-nos nestes agradecimentos sem fim, quando, lá fora, vejo a S. a aparecer e o jipe do T. de marcha-atrás a ocupar um espacito entre dois carros. Um jipe pode fazer muita coisa, é verdade, mas, infelizmente, não é capaz de executar o milagre de reduzir o seu tamanho à dimensão daqueles brinquedos antigos chamados micro machines nem mesmo ter aquela capacidade única dos objectos do Sport Billy. No silêncio da recepção conseguia ver a S. dando as indicações ao T., mais para a direita, vai podes vir, vai vai e ela gesticulava vai vai e o T. seguia, vai vai e eu fumava, vai vai, e o recepcionista sorria, vai vai só mais um pouco, vai vai já falta pouco, vai vai não posso crer, vai vai bater. Assim sem mais, tudo em câmara lenta e sem qualquer som, porque dentro do hall do hotel não se ouvia o som que lá fora ia, dá-se o fatal choque de civilizações entre a traseira do grande jipe do T. e a porta de passageiros de um carro marroquino. Lá dentro só tive tempo de experimentar um aceno de atenção que vai bater e um monossílabo ineficaz de cigarro pendente no lábio, a S. batia com a mão no carro para ver se prevenia o choque mas o T. não ouviu nada dentro da sua viatura.
Saí para rua com um sorriso meio parvo esboçado na cara ao encontro dos meus companheiros. A S. ria-se entre o desespero do cansaço sonolento e o nervoso da situação, enquanto o T. ia pensando coisas que não são dignas de serem ditas agora. Ao contrário do que sucederia em Portugal, ali não se juntaram logo mirones da desgraça alheia. À porta do Grand Hôtel de Fès apenas veio bisbilhotar um homem que ajudava a carregar as malas dos hóspedes mais dignos e endinheirados. A S. correndo como podia, com o sono a pesar-lhe nas pernas e nos seus pequenino pés, entrou no hotel para perguntar se alguém sabia de quem era o carro, mas não, ninguém sabia. Então percorreu os cafés ali mesmo à volta com o seu melhor francês na ponta da língua, até que por fim alguém conhecia o dono. Sem mais demoras, o T. desarrumou o jipe e estacionou-o à frente do sinistrado e o tal homem foi chamar o marroquino dono do carro e de uma loja pronto-a-vestir na boulevard das traseiras do hotel.
Só nos faltava esta. Fazíamos as contas às carteiras e à vida pensando no pior. Ainda nos poderia aparecer um tipo passado dos carretos, de mau feitio, violento, eu sei lá. Lembrava-me apenas daquela situação em que o T. e eu nos encontrámos no quarto do responsável do festival de teatro em Casablanca para resolver um inconveniente que se tinha sucedido entre a Sílvia das Fadas (uma das Simone Beauvoir do espectáculo que lá tínhamos levado) e um rapaz que a não deixava em paz apaixonadíssimo por ela, entre outras coisas. Lembrava-me desse director, com o ar mais aporcalhado, mais raposo e de dealer que eu alguma vez tinha visto, todo cheio de manhas e palavrinhas mansas, de camisa às riscas aberta até cintura, acompanhado por um capanga sentado no chão com um facalhão de palmo e meio a cortar kif numa tábua de cozinha. Lembrava-me disso e esperava ver chegar até nós esse director mais o seu capanga, um a discutir o preço do arranjo e a dar largas à sua trapaça e o outro com a tábua e o facalhão em cima do capot do carro à espera do mínimo deslize ou de um ânimo mais exaltado.

(cont.)

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