sábado, 18 de junho de 2011

em cinco dias évora-fès-évora fiz (xi)

Bom, aquilo foram voltas e mais voltas à procura de hotéis. Enquanto o T. ia conduzindo, eu e a S., já há algum tempo, vínhamos à vez investigando no roteiro que hotéis baratos podíamos ficar. Os primeiros que vimos, entrando lá dentro e tudo, foram uns de quatro ou cinco estrelas. Aquilo era um abuso de luxúria e com um preço por quarto upa upa. Porteiros e recepcionistas todos arranjados que nos olhavam de alto a baixo, como que a perguntarem para os seus botões brilhantes e lustrosos o que é que estes gajos esfarrapados, porcos e malcheirosos querem? Eu mantinha o meu olhar de cãozinho pedinchão e triste a ver o que acontecia, enquanto que a S., com o seu francês mais fluente que o meu, ia sabendo o custo dos quartos e o T. esperava o resultado. Aquilo eram ataques relâmpagos. Em segundos entrávamos, perguntávamos e saíamos. Nem Júlio César conseguiria dizer a sua célebre frase. Ainda fomos a um, um pouco mais barato e menos intransigente, cheio de autocarros de turistas mas nada feito, nem feio, diga-se de passagem, com loja de souvenirs e fonte com repuxo e tudo. Aí, eu e a S. desencontrámo-nos e eu não vou dizer porquê, caso arrumado.
Já ia noite escura quando encontrámos o Grand Hôtel de Fès na Boulevard Chefchaouni. Enquanto o T. esperava, eu procurava lugar para estacionar e a S. foi saber se havia quartos. Assim que recebemos uma resposta positiva, começámos a tirar as mochilas do jipe. A S. foi lá para fora ajudar o T. a estacionar o carro e eu fiquei sozinho a falar com o recepcionista a guardar as nossas coisas. Como não sou uma pessoa muito conversadora eu tinha em vista uns minutos que pareceriam horas. Sem saber o que fazer ia olhando para a decoração do hotel, os residentes que iam saindo para jantar, mas, uma vez tendo visto o que havia para ver, virei-me para o recepcionista e perguntei: je peux fumer? Bien sûr, disse-me ele num tom grave, de quem fumava, para aí desde os seus sete anos, tabaco negro e duro e arrastando os erres no seu típico sotaque marroquino. A lentidão da sua resposta dizia-me uma coisa, se fumássemos haxixe não haveria qualquer problema e ele bem poderia fumar connosco. Sabendo que podia fumar à vontade no hall de entrada, tirei de um dos meus bolsos o meu pacote de Amber Leaf e pousei-o sobre o balcão. Os seus olhos semicerrados foram escancarando de admiração, como se alguém puxasse uns estores lentamente. De outro bolso tirei um filtro e pu-lo na boca e então é que os estores foram totalmente puxados para cima: mais qu’est-ce que c’est ça? Un filtre? Oh vous avez des filtres pour les cigarettes? Oui. Je peux faire un? Mais bien sûr, il n’y a pas de problème. Vous avez du papier? Oui, ils sont dans le paquet du tabac. Smoking, on n’a de ce papier ici, on a du zig zag, vous connaît? Oui je les connais, mais je préfère du papier plus fine. Acendemos os nossos cigarros partilhando o seu isqueiro com grande parcimónia e quase ao mesmo tempo lançámos o fumo dos nossos pulmões para fora, fazendo uma grande nuvem à nossa volta. Ah, c’est du bon tabac. Hum hum. Pardon ma impertinence, mais avez-vous un autre paquet de tabac que vous pouvez me vendre? Pronto, agora é que o gajo me lixou. Eu por acaso até tinha mais um pacote comigo, eu não ia viajar sem estar preparado e não queria gastar dinheiro em tabaco em Marrocos, por isso não me queria livrar do meu querido Amber Leaf. J’avais seulement un autre paquet, disse-lhe timidamente sorrindo com toda a inquietação de quem foi apanhado desprevenido e tentando ganhar tempo para me desenvencilhar daquela situação. Ah, je comprends, pas de problème, pas de problème, respondeu-me ele muito calmamente, com a sua voz cava e gutural, desviando o olhar do meu como se estivesse ofendido, como se eu lhe tivesse dito uma crueldade qualquer que nem agora me vem à cabeça. Pas de problème uma ova, pensava eu para mim, tu estás-me a dizer isso num tom que revela que há mesmo um problema, como se me estivesses a dizer: vocês chegam cá ao nosso pobre país, nós recebemo-vos com toda a hospitalidade possível estendendo-vos os braços, sorrindo e vergando a cabeça comiseradamente, dizendo-vos aqui está um criado ao vosso serviço, un valet aux votre service e tu tens o desplante de trazer aí escondido no teu bolso um pacote de tabaco que não existe aqui no nosso pobre país, assim, abanando-o frente à minha cara como que a fazer pirraça, la la la la la-a olha o que eu tenho e tu não te-ens, para quê hã? E depois ainda me deixas fumar um cigarro para provar o seu sabor, para sentir o seu gosto suave de folhas ambarinas, como se me estivesses a mostrar um bombom para depois mo tirares, para quê hã? La la la la la-a eu vou fumar e tu não va-is. Vais ver, quando menos esperares, vais ver o que te acontece, allah vai castigar-te ai isso é que vai, vaivai. O que fazer, o que fazer perguntava-me sem saber. Por um lado, tenho que ser simpático, por outro, se der o meu querido Amber Leaf ficarei sem tabaco e terei de comprar e usar dinheiro que não queria gastar. E agora, e agora, não me posso ir embora, tenho que guardar as malas até eles chegarem. Acabei por decidir que o melhor seria deixar-me levar pelo que viesse e por isso fui ao bolso da minha canadiana e saquei o meu pacote sobressalente e estendi-o ao recepcionista. Os seus olhos brilharam por um instante e com os mesmos a sorrir olhou-me bem nos meus e pergunta-me: combien est-il, je vous payez? Mais c’est rien, c’est pour vous. Oh merci bien m’sieur, merci bien, Shukran, Shukran.

(cont.)

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