terça-feira, 14 de junho de 2011

em cinco dias évora-fès-évora fiz (vii)

Bom, a verdade é que, depois de deixarmos Sebta e Tetouan para trás, tudo começou a ficar melhor. Agora sim, começavam os campos verdes da cor do limão, mas também acabaram cedo porque iniciámos a subida de uma parte do Rif, com a típica vegetação serrana. Aqui e acolá arbustos, estevas, sobreiros, um pouco alentejana para dizer a verdade, mas não completamente, só um pouco. E, assim do nada, quando nos aproximávamos de uma terriola, a qual não apontei o nome por pura sonolência, começaram a surgir pessoas com carneiros de cara negra, assim como se passeassem o seu cão, de cordel e tudo. Por mim tudo bem, quando eu era mais novo, atrás da minha casa, costumava haver um rapaz que passeava um pato branco de bico laranja por uma trela, por isso não vejo problema algum em levar um carneiro “à rua”. Quanto mais subíamos o monte, mais carneiros. Nós acenávamos e eles também, menos os carneiros. Esses só baliam e tentavam arrepiar caminho contrariando o ar feliz e orgulhoso que cada um daqueles, que vimos, tinha. E isto agora é que foi surpreendente, demos umas curvas para a esquerda e para a direita e puf, no meio da serra, trânsito. Talvez fosse hora de ponta, digo eu agora para fazer com que uma serra se pareça mais moderna. Muitos carros e autocarros e, de cada um dos lados das janelas, mais e mais homens e mulheres, velhos e crianças, uns com roupa tradicional, djellaba, chapéus berberes, burkas, outros não, e carneiros, ora puxados por cordéis, ora por carrinhos, dentro dos carrinhos, daqueles antigos de fruta nos mercados, isto é, uma caixa de metal funda com duas rodas e um guiador em forma de tê (esses carneiros tinham um ar mais descansado, calmos, até nem baliam, mas também não acenavam em resposta).
Surpresa das surpresas, hã, a sorte que tivemos, pensámos, é dia de feira, nem todos têm esta oportunidade, não é? Era um mercado imenso, ao longo de uma colina, cheio como nenhum outro mercado, com currais improvisados. Risos, gritaria, balidos, palha, o ar quase irrespirável com o cheiro de carneiro e caganitas. Ah, o campo. E que corajosos somos nós e fomos nós, não foi? Mal nos vimos rodeados, zuca, trancámos as portas. Não sei como explicar isto. Ouvimos tanto por todo o lado, acreditamos numas coisas e noutras não, olhamos para as pessoas e não podemos crer que nos possam alguma vez fazer mal, dizem-nos sempre para sermos seguros, irmos com segurança, mas também é certo que segurança a mais acaba por ser uma prisão mais aterradora do que a completa falta de segurança. Nós sorriamos e não eram sorrisos falsos, ninguém os forçou, nem eram de nervoso miudinho, somos pessoas de bem (mas isso todos pensam de si mesmos, não é?), talvez tenhamos, ao invés, a confiança em muito baixa estima. E eu sei, digo, nós sabemos, temos a certeza que todos ali no mercado eram igualmente pessoas de bem. Boas pessoas, portanto, pessoas boas. A ameaça, não seríamos nós afinal? Mesmo assim, trancámos a porcaria das portas. Por momentos, fomos pessoas de mal, por momentos, desconfiámos, fomos inseguros, e depois? Sigamos em frente. Seguimos à velocidade normal do tráfico de ovelhas e carneiros. E íamos felizes, ouvindo Ravi Shankar: ding diridádá diguidá diguidádá.
Ultrapassado o mercado e todo o trânsito, continuámos a subir. Curvas e contracurvas, sempre a subir. Agora já se viam menos pessoas e, claro, menos carneiros. A própria vegetação acompanhava a mudança, tornava-se por vezes mais densa, onde havia ribeiros que a refrescavam e alimentavam, os oued, ou então, e agora sim, abria em campos mais amplos, verdes. Durante a subida, o que se via mais eram marroquinos a pedir boleia, com um gesto muito particular. Ao contrário do que se costuma ver e fazer, mão fechada e polegar esticado indicando a direcção para onde se pretende ir, os marroquinos apontam com o indicador uma só vez, por isso nunca sabemos bem - quero dizer, para quem não conhece a sinalética como nós desconhecíamos naquela altura - se realmente estão a apontar para alguma coisa ou nos estão a repreender, tal como se repreende um gato irrequieto e abanamos o dedo, estou-te a avisar, olha que vais apanhar (a voz do corvo daquele programa de viação para crianças é prescindível, claro, se quiserem). Outros, que não a pedir boleia, tentavam vender kiff, igualmente com um gesto muito característico e mais à semelhança do nosso, quando se pergunta à socapa se o outro quer fumar. Mas a maneira como eles fazem é… é diferente. Primeiro, põem a mão no ar como se estivessem a mandar parar um carro, ou a acenar para alguém lá ao longe e, zás, a mão dá uma ligeira volta, isto é, mão esticada marca o ângulo zero, a volta põe-la a quarenta e cinco graus, com uma particularidade, dois dedos, o indicador e o médio, marcam o lugar do charro e o polegar também fica levantado, mão ligeiramente relaxada, mais como se segurasse um charuto.

(cont.)

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