segunda-feira, 13 de junho de 2011

em cinco dias évora-fès-évora fiz (vi)

Uns quilómetros mais adiante aguardava-nos o grande teste à nossa paciência: a fronteira. A uma centena de metros das redes que separavam Ceuta de Sebta, ela de si mesma portanto, já uma fila enorme de carros se estendia ao longo da estrada. Logo logo um marroquino nos foi bater à janela, para nos despertar do torpor e daquela visão, perguntando se queríamos auxílio, queria ele dizer, dêem-me uns quantos euros ou dhirames e eu trato da vossa papelada. Recusámos de imediato, mas com cordialidade, quase com paninhos quentes para que ele não se ofendesse, o que ele ficou, ofendido, muito ofendido. Tão ofendido que quase nos gritou que então temos de ir para lá e despacharmos as coisas. Estacionámos o jipe atrás de uns outros carros que já lá estavam parados, pusemos mochilas às costas e lá fomos, de olhos semicerrados de sono, lentos, lentíssimos, quase passada de caracol a tentar, de longe, entender para onde nos deveríamos virar para tratar de tudo e passarmos para cá de Marraquexe e para lá de Ceuta. Eu só conhecia a confusão que era no aeroporto de Casablanca. Aí, os guardas fronteiriços fazem uma separação, nacionais para aqui estrangeiros para ali, e tudo vai correndo pacificamente com mais ou menos perguntas e olhares interrogativos. Mas ali? Vocês têm que estar lá para ver, para presenciar a lufa-lufa que aquilo é, a confusão, a vida, a gritaria, a alegria que nem um mercado em dia santo de feriado se lhe compara. De lá para cá ninguém ou quase ninguém. Agora, de cá para lá, ui. Ia ser um trinta e um. E para onde nos havíamos de virar? As cabinas não diziam nada, nem um sinal, nem uma informação sequer, nada, nada, nada. E nós, feitos papalvos a olhar para as bichas enormes de pessoas de todas as idades, cores, nacionalidades. Uma verdadeira torre de babel. Acho que todas as línguas se falavam ali. Bom, se calhar nem todas. Vá, não estavam lá bosquímanos com o seu estalar da língua. Mas uma grande parte das línguas que se falam no mundo juro que estavam. Tínhamos de pôr mãos à obra. Desse por onde desse havíamos de passar a fronteira. Tentámos delinear um plano, plano esse que era dos mais simples de se pôr em prática. Colocámo-nos numa fila, que não nos parecia muito cheia, a ver o que acontecia. Fazíamos uma espécie de triângulo, o T. à frente, eu de um lado e a S. de outro, cada um a olhar numa direcção a ver se percebíamos o que fazer, como agir. Reparámos assim que era preciso arranjar papéis. Que papéis? Papéis. Toda a gente tinha papéis nas mãos. Nós também tínhamos uns, que nos tinham dado quando comprámos os bilhetes para o barco. Dois cartões, um branco e um amarelo, um para apresentar à entrada com os nossos dados e explicação da nossa visita, e um de saída com a mesma informação. Não eram aqueles os papéis mais importantes que toda a gente tinha na mão. Era um papel verde para dar visto ao transporte que usávamos para a viagem. Temos de saber onde arranjamos aquele papel, dissemos. Tempo para mais uma vista de olhos e, mais importante que tudo, reparar bem o que faziam os marroquinos com carros. A fila não parecia ter nenhuma ordem, o que parece que é normal para o resto do país. Pessoas iam passando à frente e falavam com o guarda no guichet. Ah, então é assim! Enquanto o T. ficava na bicha, eu ou a S., já não me lembro bem, um de nós, acho que foi a S., foi pedir o papel verde, foi, foi a S., e estava tudo feito. Agora era só preencher e esperar a nossa vez. Entretanto fomo-nos apercebendo das maroscas que se sucediam debaixo dos nossos narizes, não digo dos guardas porque eles próprios também estavam metidos nelas. Sujeitos como aquele que nos perguntou se precisávamos de ajuda, uma meia-hora atrás, batiam às portas e entravam livremente nos guichets, pegavam nos carimbos, carimbavam, diziam umas quantas palavras e saíam. Davam os papéis carimbados, vistos e legalizados a quem de direito, a quem eles estavam a prestar serviço, voltavam ao guichet e pagavam ao guarda. O preço estava já tão marcado que até as autoridades davam troco aos outros. Acho até que eles tinham uma tabela com o preçário para cada tipo de nacionalidade. Quem tinha mais, ingleses, americanos, europeus do norte, pagavam mais, nós e os que faziam parte dos PIGS (Portugal, Italy, Greece and Spain), claro que pagavam menos. Entretanto, acabámos por perceber, depois da S., sempre a S., ter conversado com umas velhotas francesas que andavam de um lado para o outro a tentar despachar os seus papéis, que era preciso, antes mesmo de tratar dos papéis do jipe, aviarmos os nossos próprios papéis, senão era como um jipe fantasma que tivesse chegado a Marrocos. Decidimos, o T. decidiu depois de muitos pch cala-te, então, que o melhor seria: 1) o T. ficaria ali naquela fila para o jipe; 2) eu ia ver como estava o jipe e depois voltava para perto da S.; 3) a S. tentaria perceber melhor, através das velhotas qual era o guichet para os nossos passaportes; 4) eu faria um sinal ao T. quando ele tivesse de mostrar a sua cara ao guarda e compará-la com a fotografia, o que; 5) eu nesse momento me poria na bicha para o jipe.
Ora, nessa altura, quando voltava da vistoria ao jipe, telefona-me a Dona R. do IEFP. Agora perguntam-se: o que é que isso interessa? Para vocês pode não significar nada, mas para nós muitíssimo. E agora dizem: mas por que é que nos vais contar isso? Porque assim vocês têm uma perspectiva maior, um olhar mais amplo de toda a situação que, aos poucos e poucos, se ia tornando cada vez mais kafkiana. É que não era só a questão das maroscas que por lá andavam, nem o termos de ir de um guichet para outro e desse para outro sem resultados à vista, nem o falarmos com pessoas que nem sequer percebiam a nossa língua e nós a deles, ou os guardas nos guichets, e eram muitos, não falarem francês ou espanhol mas apenas e somente árabe, ou um português, para aí com uns sessenta e poucos anos, perder o seu passaporte, ou as filas intermináveis que não pareciam andar de todo. Para quem não sabe, nós os três fazemos parte de uma associação cultural e a S. tinha terminado no mês anterior, Novembro portanto, o seu estágio profissional na associação. O seu estágio, na nossa associação, parte de um acordo, de um programa do IEFP, programa esse que é financiado com dinheiros da comunidade europeia o qual tem de ser justificado através de relatórios trimestrais. Ora, nós tínhamos entregue o último relatório, pronto e certíssimo, imaculado e sem falhas, e esperávamos a última tranche para cobrir o resto das contas, que eles só pagavam depois da apresentação desse mesmo relatório. Nós pensávamos que tudo estava bem na frente ocidental, até que a dita D. Rosa nos telefona para nos avisar que faltava uma certidão de não dívida às finanças, que já tínhamos apresentado cópia mas que, parece, para ela nós não a tínhamos fornecido. Diz-nos ela então que se não apresentássemos a dita certidão até ao final daquele dia, não nos pagavam. Bom, eu posso ser a pessoa indicada para receber esse tipo de notícias, porque me mantenho extremamente calmo, mas, por outro lado, não sou mesmo a pessoa indicada para passar palavra, porque me baralho todo, troco toda a informação e, uma coisa que seria facílima de explicar, fica toda deturpada. Calmo, sim, fiquei, pudera, eu estava a dormir em pé, aquilo só me despertou um pouco mais. O pior, claro, era saber como iríamos resolver aquele problema, estando nós fora do país e sabendo que não arredaríamos pé dali. Contei a novidade à S. e ao T.. Caiu-lhes tudo, como se costuma dizer. Ficaram uns segundos paralisados, calados, dominados por mais um dado à nossa admirável aventura. Mas ela está a gozar connosco? Tu não lhe deste isso? Sim, disse eu, dei a porcaria da certidão logo quando fizemos o contrato, mas ela diz que não a tem, e que me disse para a dar há já algum tempo, só que eu não me lembro disso, e não me lembrava mesmo, naquele momento não me lembrava de rigorosamente nada. É que, se a minha cabeça normalmente está em branco, naquele exacto momento, tendo dormido pouco, a minha cabeça era branco sobre branco. Não terás esquecido de lhe dar? Não, acho que não; e disseste-lhe que estávamos fora do país? Esta é outra característica minha, sou o esquecimento em pessoa, a distracção em figura de gente. Não, não disse, disse eu. O que é que fazemos agora? Deixa-me pensar, disse o T., ok, S., telefona ao P. (um amigo nosso) para que ele envie a chave dele ao C. (outro amigo nosso) e eu telefono à S. (bom, não é preciso dizer nada) ao mesmo tempo para que ela vá à minha casa buscar a minha chave da Sede, se um não conseguir consegue outro. Esta é uma característica do T., por mais cansado que esteja consegue sempre pensar em soluções. Ora, o P. não atendia, devia estar a dormir, e quanto à S., já não me lembro bem como resultou. Telefonámos, então, directamente para o C., para que ele tentasse contactar o P. e depois tentar ir à Sede e tentar entrar lá dentro. Como nós partilhamos o espaço com um escritório de arquitectos, um deles é o nosso senhorio, alguém lá deve conseguir abrir a porta, o senhorio tinha ainda uma chave. Senão, havia um espacito contíguo aos dois escritórios, nem que um deles rebentasse a porta de vidro que dá para o hallzito e o C. tirava a certidão, fazia uma cópia e levava-a à Dona R. do IEFP. Ele ia fazer o que podia, o C.
Entretanto, entre telefonemas e ideias, a fila dos passaportes ia avançando, bem como a dos carros. Eu tratei do meu passaporte, chamei o T. e fui tomar o lugar dele na outra bicha. Depois despachámos o jipe, prestando atenção às maroscas que continuavam a suceder e, aos poucos e poucos, a fronteira ia ficando cada vez mais vazia. Com tudo tratado, voltámos para o jipe. À nossa beira estava estacionado uma carrinha de turismo atolada de portugueses. Desejámos boa-viagem e bom ano e partimos em direcção às cancelas que nos separavam finalmente de Sebta. Passámos sem quaisquer problemas, mas íamos todos calados a tentar pensar o que é que podíamos fazer para resolver o nosso qui pro quo. E vindo sabe-se lá donde do sótão do meu cérebro, para espanto meu e dos meus companheiros de viagem, a ideia de que o C. podia ir à nossa casa, minha e da S., buscar as chaves do carro, abrir o carro e tirar de lá as chaves que eu julgava serem da Sede, que não eram, eram da escolinha dos Trimagisto (uma cooperativa nossa amiga), e depois ir na minha bicicleta até à Sede e tudo ficaria resolvido. A S. disse depois que as chaves eram da escolinha, mas que as chaves dela da Sede estavam num casaco lá em casa e que o C. podia entrar e etc. e tudo ficaria resolvido. E assim foi. Agora sim, podíamos ir descansados. Mas, para que tudo fique dito deste assunto, terei de dizer que o C. entregou a cópia, mas esta já tinha passado de validade, o que de seguida Fès com que a Dona R. do IEFP nos voltasse a telefonar. Só que desta vez, ela devia estar muito chateada aquando do primeiro telefonema, só que desta vez, dizia, embora a certidão não fosse válida tínhamos até dia dois de janeiro, três de manhã no máximo, para regularizar a situação. Foi um ufa geral, aí por volta das três, quatro horas da tarde. Allah sorria-nos, sorria-nos para o resto do caminho, com um sol quente e um azul do céu penetrante que nos protegia.
A poucos metros, depois de passar a fronteira, vem de encontro a nós o primeiro choque. De repente, parece-me que o que realmente separa a Europa de África não é um mar quente, nem diversas religiões, línguas, cores, mas uma coisa ainda pior, quero dizer, parece-me muito feio, mas muito feio mesmo, pensarmos nessas coisas como aquilo que nos separa, coisas que provocam e provocaram muitas guerras, mas não é isso que interessa. Aquilo que de facto separa os dois continentes, e que é muito feio, muito feio mesmo, é a maneira como tratamos o lixo, o lixo de cada um. Ao longo da grande avenida, cortada por rotundas atrás de rotundas, como em Évora, Viseu, etc., a longa avenida que passa ao lado da verdadeira Sebta, de Tetouan e que se dirige para Fès, é uma única lixeira. Nós pensávamos, ou eu pensava e de certeza que a S. também, que iríamos ver campos que ladeavam as montanhas altíssimas e o deserto com camelos (aliás, camelos, durante os cinco dias, vimos só três e nessa mesma avenida), campos extensos que isolavam as cidades marroquinas umas das outras. Ao invés, os limites das cidades são lixeiras. Aterros com pássaros a voar no alto, cães escanzelados à cata de comida, crianças a brincar. E havia até naquela um pequeno pântano com juncos, pauís, só faltavam aquelas chamazinhas de gás natural, de metano. Que desilusão à primeira vista, que desilusão. É o que dá criarmos demasiadas expectativas. É bem feito para nós. Toma lá que já levaste. Por isso mesmo, virei-me para a frente e, tenho que vos dizer, foi a coisa mais acertada que fiz. À frente, mais longe ainda do que a linha do horizonte, erguia-se o Rif. Uma cadeia enorme de montanhas e lá em cima neve. Um dia quente, comparado com os que tínhamos passado em Évora, um dia soalheiro e lá à frente, no topo da montanha, neve, a brilhar. Na ladeira, uma camada de nuvens. Era o postal do dia, sim senhor. Gostei. Melhor que sabão macaco, oh, oh, muito melhor. Daquilo, digo-vos sinceramente, não estava à espera, não, não.

(cont.)

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