sexta-feira, 10 de junho de 2011

em cinco dias évora-fès-évora fiz (v)

Numa qualquer avenida, encontrámos um café com empregadas marroquinas, aparentemente aberto há muito pouco tempo, quero dizer, acabado de abrir por aquela manhã. O T. perguntou a uma delas se serviam alguma coisa para comer. Claro qué si, disse ela, entonces son duas tostas de queso y una torrada, tres leches con chocolate y después trés cafés. Pouco faltava para amanhecer e nós os três, quase sem falar, caíamos de sono. Tentávamos pensar o que faríamos a seguir, se esperávamos pelas dez horas, se nos metíamos à estrada até à fronteira e comprávamos um mapa quando o encontrássemos. Quase ninguém nas ruas da Ceuta espanhola, uma tipa notoriamente alcoolizada e aos tropeções a descer uma rua com um copo ainda na mão, vendedores de lotarias, homens do lixo conduzindo aqueles carros com vassouras giratórias e que lavam o chão enquanto varrem, desportistas convictos a correrem num frio de rachar, enquanto nós, pulmões cheios de tabaco da uma viagem de doze ou mais horas, ali sentados, mirando, mirando e a fumar, à espera do fabuloso pequeno-almoço que nos aguardava, feito carinhosamente para estes três forasteiros, turistas estrangeiros, com um aspecto deplorável e pálido mesmo de quem não dormiu nada, feito com comiseração, com hospitalidade, quem sabe mesmo se não com uma certa familiaridade de quem já passou por isso de viajar muitos quilómetros e sabendo que uma pessoa está ali esfaimada, fatigada, com um sorriso mais parvo do que o da Mona Lisa e que quando vê o prato é como se lhe dessem a oitava maravilha do mundo. Alto lá, pára tudo, neste prato ninguém toca. Eu só pensava numa tosta estaladiça, a fumegar, não muito queimada nem muito crua, barrada com manteiga por cima alourando o pão, pelas bordas um queijo que molemente escorregava, se deixava cair com uma lentidão pegajosa e nem dando conta que está a ferver e trincamos aquilo tudo queimando a língua. E aquilo nunca mais vinha. E o cigarro ia-se fumando. E o sol lá muito ao fundo a vir de dentro da água. E os pássaros a começarem a piar e a chilrear. E finalmente chega a miséria das misérias de duas metades de uma baguette seca e desmiolada (é que parecia mesmo que não tinha miolo) e dois triângulozitos da Vache que rie, a bela tosta que me esperava como primeira refeição em África. Com a fome que tinha, que tínhamos, era melhor que nada. Fomos comendo aquilo com muita tranquilidade, com muita calma, bebendo o leite com chocolate quente, a trocarmos umas palavras, o T. a começar a tirar fotografias das variantes de azul que se faziam com o nascer do sol e a dizermos muitas, muitas parvoíces. Realmente, o que tenho mais pena é não ter apontado todas essas parvoíces que dizíamos, à parte de uma frase recorrente desde Évora: pch cala-te! Alguém começava a dizer qualquer coisa que lhe vinha à cabeça, pch cala-te, ou alguém começava uma conversa mais séria e pch cala-te, bastava quase só abrir a boca e pch cala-te e a S. era quase sempre a sacrificada. Era vê-la a começar a ficar furibunda e pch cala-te mas, pch cala-te, ai a pch cala-te, vocês querem pa pch cala-te e por aí adiante.
Depois de termos comido pedimos os cafés, três copos de café, ou cevada com a cor do café e cafeína nem vê-la, como o Mediterrâneo. O dia fazia-se mais claro, o mesmo que dizer mais dia e o azul mais pálido, um pouco cinzento. Enquanto a S. se foi trocar, o T. foi pagar (ele é que tinha todo o nosso dinheiro, porque eu e a S. não temos cartão de crédito por ficarmos na lista negra da CGD e só podermos utilizar a caderneta, impossível de usar no estrangeiro, limitada em terreno nacional a um horário absurdo, que às vezes nem ao fim-de-semana podemos fazer nada, assim a caderneta é uma espécie de prisão de ventre bastante indesejável). Pagámos um dinheirão por um mau serviço, porque a tosta não era tosta, nem a baguette tinha miolo nem o café cafeína. Mas já tínhamos comido qualquer coisa e por isso lá fomos em busca de um mapa. Começámos à procura de papelarias abertas. Fomos até uma bomba de gasolina para encher o depósito de gasóleo mais uma daquelas latas para as viagens (que não me lembro mesmo do nome… ah, bidão, é isso) para não ficarmos apeados, e demos mais uma volta. A verdade é que os mapas em Ceuta são como o Mediterrâneo quando o estamos a atravessar e a caír de sono. E se a S. estava como estava, o que já não era pouco, o leite começou aos berros no seu estômago a pedir para sair dali para fora, possivelmente não queria passar a fronteira. O T. deixou-me a mim e a ela numa praça, dirigimo-nos para trás de um grande restaurante que lá havia e, bom, não saía nada como a mim não me saía pelo outro lado. E ela ia ficando cada vez mais enjoada e pálida, quando não lhe vinham os vómitos e a cara ficava-lhe completamente vermelha com os olhos raiados também quase a saltarem das órbitas, o que para a S. não é assim tão estranho, olhuda como ela é. O melhor é pôr os dedos à boca, aconselhava-lhe eu; não consigo, isso é pior; mas vais sentir-te melhor, o que é verdade e ela própria também o sabia. Voltámos para o miserável café e a S. pediu licença para usar os sanitários. Eu fiquei à espera tentando ler um jornal de dois dias atrás. Quando ela saiu via-se que estava melhor, à parte da situação hormonal feminina. Desandámos dali para fora e fomos ter com o T. No caminho, uma papelaria já começava a abrir as suas grades e portas e perguntámos, a S. perguntou, onde poderíamos arranjar um mapa. A caminho da fronteira encontraríamos uma estação de serviço e lá, de certeza absoluta, teríamos um mapa à nossa espera. E não é que era verdade, o último mapa estava lá à nossa espera e todo o Mediterrâneo do nosso lado esquerdo com as suas ondas de encontro às rochas e ao paredão da marginal. Finalmente vi-te.

(cont.)

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