terça-feira, 7 de junho de 2011

em cinco dias évora-fès-évora fiz (ii.)

Como tínhamos bastante tempo ainda, decidimos ir jantar. A última refeição ocidental: duas pizzas familiares com extra queijo, cogumelos, cebola, pepperoni e qualquer outra coisa que agora não me lembro (porque não anotei os condimentos), na Telepizza. Comemos uma e guardámos a outra para o almoço do dia seguinte, o que talvez nos pouparia algum dinheiro. Demos uma volta pela zona dos bares em Algeciras, bebemos um café, um horrível café diga-se de passagem, e por volta da meia-noite voltámos para o porto. Como já sabíamos o caminho e a porta certa, não foi difícil encontrarmos o local exacto de onde partiríamos no Ramón Lull. Novo parque de estacionamento como os que existem debaixo dos viadutos nas grandes cidades, já com alguns carros estacionados, maioritariamente marroquinos. Famílias inteiras com a casa às costas à espera da embarcação, do retorno, mães, pais, filhos, filhas, irmãos e irmãs, bebés de colo, amigos que se encontram e trocam palavras, turistas a dormir em carrinhas e auto-caravanas e frio, muito frio. Tínhamos atravessado parte de Portugal e parte de Espanha, muitos quilómetros num jipe, duas paragens (uma, mais demorada, para comer à hora do almoço, outra, mais rápida, já em Espanha, para se trocarem condutores e para se fazerem as necessidades ao ar livre), ossos e músculos moídos, estávamos cansados e de barriga cheia a lutar contra o sono. E quando estamos cansados e de barriga cheia a lutar contra o sono o frio parece mais frio do que realmente está, ou é.
Para travar os passos largos do sono, para fugir às brumas de Morfeu, pensámos dar uma volta pela gare, simplesmente para ver como ela era e se lá dentro alguma loja estivesse aberta com mapas de Marrocos. Àquela hora tudo estava encerrado, grades a toda a volta das lojas. O melhor em vista seria dar uma olhadela às casas de banho, para que nada desse errado nas longas horas de espera até à nossa partida. Enquanto um ia, dois esperavam à porta. Pessoas dormiam, ora sentadas, ora deitadas, nas cadeiras pouco cómodas das salas de espera, outros liam jornais e revistas, uns quantos, como nós, passeavam ou partilharam da mesma ideia, isto é, mais vale aliviar que aguentar. Eu mal podia esperar pela minha vez. As pessoas que me conhecem sabem muito bem como trabalha o meu intestino, sabem que após cada refeição, conjugada com um cigarro e um café, o melhor é saírem da minha frente porque não respondo por mim. Aliviar-me numa casa-de-banho é um éden que nunca tento descurar, que ninguém me pode tirar. As casas-de-banho são dos meus lugares preferidos, acompanhado por um cigarro e um livro, ou umas palavras cruzadas ou um su doku. Demoro-me o máximo que posso, ali tenho a certeza que ninguém me incomoda. Leio as portas, as paredes, até mesmo o chão se for de mármore raiado e com desenhos bastante interessantes. Para azar dos azares, à S. surgiu-lhe o mal de mulher, o pior para uma mulher quando em viagem. Acho que foi completamente natural, mesmo se infelizmente para ela, se tomarmos em conta que toda ela era excitação com a viagem a Marrocos e as hormonas responderam-lhe, infelizmente para ela (e não vou dizer que não para mim também, embora um pouco de sangue nunca Fès mal a ninguém). Mas um azar nunca vem só, como se diz muitas vezes, e também eu fui apanhado por ele. Não, não me surgiu uma menstruação contra-natura, nem uma diarreia dos tempos bíblicos, aconteceu-me exactamente o que mais me custa, aquilo que eu menos queria que me acontecesse e que já vinha dando sinais desde a manhã em Évora antes de partir, e em Beja e depois no bar em Algeciras (na casa-de-banho das mulheres que entrei por engano, realmente estava demasiado limpa para ser uma casa-de-banho de homens de verdade), equivalente ao período se eu fosse mulher, isto é, uma completa e total obstipação, uma indesejada prisão de ventre, a maior hora de ponta sem qualquer escoamento, sem vazão. Lá estava eu, de cócoras, a tentar parir para um buraco um zero absoluto, um vazio astronómico. Eu agarrava-me ao trinco da porta, respirava, arfava, debatia-me com o vácuo do meu intestino, ficava vermelho, começava a transpirar, quase que os meus olhos saíam das suas órbitas e nada. Nada de nada. Realmente nada, nadinha de todo. Descobria-me, naquele momento, no meu inferno mais que pessoal, era o fim da picada para mim. Eu já me via aos poucos e poucos a começar a inchar e a inchar, o botão das calças a saltar disparado se alguém me tocasse mesmo ao de leve no estômago. Saí dali para fora e eles expectantes perguntaram-me e então? Nada, disse eu muito desgostoso; nada de nada?; nadinha.

(cont.)

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